Arlindo Nascimento Rocha[1]
O mito não se importava com contradições, com o fabuloso e
incompreensível, não só porque esses eram traços da narrativa mítica, como
também porque a confiança e a crença no mito vinham da autoridade religiosa do
narrador.
[CHAUÍ, 2003, p. 25].
Resumo
O estudo sobre o mito como categoria fundante da
tradição humana é fundamental, pois, através dele acessamos um conhecimento que
outrora era tido como discurso factual e verdadeiro. Nesse aspecto, questionar
a factualidade ou a veracidade de um mito era uma heresia. Em estudos de suma
importância, encontramos a concepção de mito como sendo oriundo de vários
domínios do conhecimento humano. Por isso, nosso objetivo com esse artigo é
fazer uma investigação sobre a origem, os limites e a natureza dos mitos em
nossa sociedade. Nossa pesquisa terá como suporte a investigação e revisão
bibliografia que versa sobre o tema, para desenvolver a pesquisa, e, na
conclusão apresentaremos nossa análise.
Mito & Mitos: Origem, Natureza e Limites
É inquestionável a presença dos mitos na vida dos homens desde sempre.
Então, conhecer os diversos mitos é aprender o segredo das origens das coisas,
pois, sua função soberana é revelar modelos exemplares de todas as atividades
humanas. Com isso, ele se torna um elemento essencial da civilização. Por isso,
estudar os mitos nos leva a compreender a história do homem, sua cultura, suas
crenças e valores. Pois, “o mito narra a origem das coisas por meio de lutas,
alianças e relações sexuais entre forças sobrenaturais, que governam o mundo e
o destino dos homens”. (CHAUÍ, 2009, p. 24).
O que não se pode explicar pela razão e pelo saber disponível é
compensado pelos mitos ou pelo sobrenatural. Para os gregos, segundo Pereira
(2014, p. 7), “a palavra mito, designava desde os Poemas de Homero, uma forma
de discurso. Daí passará ao significado de narrativas, real ou fictícia, e, neste
ultimo sentido, começará a opor-se ao Logos que se aplica à história verídica”.
Etimologicamente, a palavra mito,
vem do grego mythos, e deriva de dois
verbos: do verbo mytheyo (contar,
narrar, falar) e do verbo mytheo
(conversar, contar, anunciar, nomear). Os mitos podem ser divididos em duas
categorias: os cosmogónicos
(narrativas sobre o nascimento e a organização do mundo) e os teogônicos (narrativa da origem dos
deuses a partir de seus antepassados). Segundo Marilena Chauí:
Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou proferido para
ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele que
narra, é uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na autoridade e
confiabilidade da pessoa do narrador. Essa autoridade vem do fato de que ele
testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem a
testemunhou os acontecimentos narrados. (CHAUÍ, 2003, p. 23).
Tradicionalmente, definimos mito como sendo histórias tradicionais,
quase sempre sobre deuses, heróis e criaturas do mundo animal, que explicam por
que o mundo é do jeito que é. Para Armstrong (2008, p. 269), a palavra mito, é
muitas vezes usada como sinônimo de mentira: na linguagem popular, mito é algo
não verdadeiro. Mas, a concepção epistemológica do conceito de mito é muito
mais abrangente do que isso. Pois, segundo Ramos (2006, p. 19), “os mitos
moldam nossa percepção do mundo e dos fenômenos que nos propomos estudar. Foram
criados durante a busca de significado da vida e, por meio deles, passamos a
ter uma compreensão mais racional do mundo que nos cerca”. Os mitos antigos, de
acordo com Reñones (2004, p. 150), podem realmente comunicar algo [...]. Eles
têm algo a dizer como as pinturas rupestres, as danças eslavas, os poemas de
Bashô ou qualquer outra manifestação criativa antiga tem [...]. Segundo
Burkert, “o mito deve ter um significado especial e intelectual em relação à
sociedade e é um fenômeno multidimensional”. (BURKERT apud PEREIRA, 2014, p.
16).
Entretanto, antes de mais é importante ressaltar que, uma das
caraterísticas do mito é que seu discurso funda-se basicamente sob os alicerces
da construção metafórica. O mitólogo Joseph Campbell, reforça essa ideia,
afirmando que, “mitos são metáforas da potencialidade espiritual do ser humano.
Eles nos relacionam com a natureza e com o mundo natural”. (CAMPBELL, 1992, p. 6 apud RAMOS, 2006, p. 19). Segundo Armstrong, “Campbell tornou-se
extremamente popular: ele explora a mitologia perene da humanidade,
relacionando mitos antigos com os que ainda perduram em sociedades
tradicionais”. (ARMSTRONG, 2008, p. 13).
O Filósofo Italiano Nicola Abbagnano (1901-1990), nos mostra que historicamente
é possível distinguir três significados do termo. Primeiro: como forma atenuada
de intelectualidade; segundo: como forma autônoma de pensamento; terceiro: como
instrumento de estudo social. Assim, segundo ele, considerando os três casos
específicos afirma-se que:
No primeiro caso, na antiguidade clássica, o mito era considerado um
produto inferior ou deformado da atividade intelectual. A ele, era atribuído no
máximo, “verossimilhança” enquanto a “verdade” pertencia aos produtos genuínos
do intelecto (posição de Aristóteles e Platão);
No segundo caso, como forma de pensamento autônomo, a validade e a
função do mito não são subordinadas ao conhecimento racional, situando-se num
plano diferente do plano do intelecto, porém, dotado de igual dignidade (posição
defendida por Gianbattista Vico); e,
No terceiro caso, como teoria sociológica, o mito é uma justificação
retrospectiva dos elementos fundamentais que constituem a cultura de um grupo,
pois, o mito não é uma simples narrativa, nem forma de ciência, nem ramo de
arte ou de história, nem narração explicativa. Cumpre uma função sui generis, intimamente ligada à
natureza da tradição, à continuidade da cultura, à relação entre maturidade e
juventude e à atitude humana em relação ao passado. Sua função é reforçar a
tradição e dar-lhe maior valor, prestígio, vinculando-a, a mais elevada, melhor
e mais sobrenatural realidade dos acontecimentos iniciais (posição de Frazer e
Malinowski). (ABBAGNANO, 2007, pp. 784-786).
Na esteia de Abbagnano que aponta
três significados para o termo historicamente localizados, Cabral (2012) aponta
as caraterísticas básicas dos mitos. Segundo ele, “em síntese, são três a
características básicas do mito como tipo de conhecimento: crença, uso da
imaginação (na ausência de uma argumentação racional), tradição oral ou
narrativa”. (CABRAL, 2012, p. 30). Assim, o mito desafia nossos pensamentos, e,
por isso, ao longo da história, muitos teóricos procuraram explicações para
tal. A evolução que se deu através dos estudos antropológicos, sociológicos,
filosóficos e psicológicos permitiu o desenvolvimento da interpretação que se
dá atualmente aos mitos. Então, apresentarei sinteticamente a visão de alguns
estudiosos que se dedicaram ainda que não especificamente ao estudo dos mitos,
mas, que pela natureza de suas pesquisas, foi importante refletir sobre os
mesmos.
De acordo com Horta (2013), o antropólogo polaco, Bronisław Kasper
Malinowski (1884-1942), entendeu que todo mito contém em seu núcleo um
acontecimento natural qualquer elaboradamente tecido em uma história.
Malinowski, afirma que o mito:
[...] Não é uma explicação destinada a satisfazer uma curiosidade
científica, mas uma narrativa que faz viver uma realidade original e que
responde a uma profunda necessidade religiosa, as aspirações morais a
constrangimentos e imperativos de ordem social e, até, de exigências práticas.
(MALINOWSKI, 1995 apud SCHOCK, 2008,
p. 247).
Malinowski, foi o representante da escola funcionalista e através de
seus estudos empíricos em Trobiand afirmou que, o mito preenche, na
cultura primitiva, uma função indispensável, pois, é produto de uma fé viva que
serve para codificar e reforçar normas grupais, salvaguardar as regras e a
moralidade e promover a coesão social. Para ele, “a história da origem contém o
estatuto legal da comunidade” (MALINOWSKI, 1988, p. 119), e uma autêntica
“carta social” que sustenta a manutenção do poder, do privilégio e da
propriedade.
A mitologia muitas vezes constitui uma tentativa de explicar o mundo
interior da psique. Assim, para o médico neurologista, criador da psicanálise,
Sigmund Freud (1856-1939), de família judaica, oriundo de Freiberg in Mähren (Império Austríaco), atualmente pertence
à República Tcheca via o mito, como um disfarce da sexualidade e uma
onipotência do pensamento. Ele voltou para os mitos antigos, como a história de
Édipo, para explicar a nova ciência. Entretanto, um dos mitos que ele propôs,
quando interpretado literalmente pode parecer tolo quando comparado como um
fato científico. Segundo Leifer (2000, p. 155), Freud disse que o primeiro
passo ruma à civilização e à domesticação do fogo, que resultou da opressão e
da inibição do ‘erotismo uretral’ [...]. Segundo o mesmo autor, ele imaginava
que os homens primitivos apagavam o fogo urinando em cima dele [...], portanto,
a inibição do desejo de apagar o fogo urinando resultou na domesticação do
fogo. Assim, Freud escreveu: “o primeiro que foi capaz de negar a si mesmo esse
prazer e poupar o fogo conseguiu levar o fogo consigo e domá-lo para o seu
serviço”. (LEIFER, 2000, p. 155). Segundo Eassirer, (2003, p.48), “quando
Sigmund Freud começou a publicar seus artigos sobre ‘Totem e tabu'[2], em 1913,
o problema do mito atingira um ponto crucial. Filólogos, antropólogos e
etnólogos tinham oferecido suas diferentes teorias sobre o mito”.
Para o antropólogo James Frazer (1854-1941), não há um limite que separa
a magia da ciência, a primeira é a pseudociência, tendo em conta que, ambas
buscam a realidade. Segundo Gebara et al (2014), Frazer chegou a publicar uma
coleção de mitos das origens do fogo, Myths
of origin of the fire, em 1930. Eles são de opinião que a coleção permanece
valiosa, mesmo que o titulo seja enganoso, pois, os contos não são sobre ‘as
origens do fogo’ mas sobre as origens da posse humana exclusiva do fogo. De
acordo com Pearsall, Frazer, escreveu um livro sobre mitologia arcaica, chamado
The Golden bough (o ramo dourado)[3]. Nessa
obra, ele afirma que a história da cultura se divide em três fases de
desenvolvimento: ignorância mitológica; fé religiosa e um estágio utópico de
‘razão pura’. Frazer afirma que a raça
humana saiu lentamente do modo mágico rumo à religiosidade até finalmente
conhecer a luz da ciência e da racionalidade. (PEARSALL, 2011, p. 95).
Frazer não estava sozinho, uma vez que, segundo Cassirer (2003, p. 25),
“continuava uma tradição que remontava os primórdios da antropologia científica
no século XIX”. Segundo ele, Sir Edward Burnett Tylor (que retomaremos mais
adiante), publicou o seu livro Cultura
primitiva onde ele considerava que não existe qualquer diferença essencial
na mente de um selvagem e de um homem civilizado. “Edward Burnett Tylor
descreveu o mito como uma filosofia selvagem”. (CASSIRER, 2003, p.48).
Já o sociólogo Émile Durkheim (1858-1917), embora não tenha estudado os
mitos em si, mas o fez enquanto premissa de que eles nos ajudam a entender as
ideias sobre a religião, pois, sem o estudo dos mesmos é impossível entender o
que quer que seja de uma religião. Neste sentido, para Durkheim, os mitos são
somente uma parte das crenças religiosas. enxergou na sociedade, o verdadeiro
núcleo do mito, ou seja, uma projeção social que reflete as características
cultivadas fundamentais da vida coletiva. Ele postulou que os mitos refletiam a
estruturas sociais de uma dada cultura.
Para o filósofo alemão, Ernest Cassirer (1874-1945), o mito é produto da
emoção. Em sua obra Um Ensaio sobre o
homem, Cassirer, argumenta que:
O mito tem dupla face: de um lado, mostra uma estrutura conceitual e, de
outro uma perceptual. Não pode ser considerado como uma amálgama de ideias sem
sentido. Sua logicidade está circunscrita em uma determinada percepção de
mundo. O mito é um estágio da percepção que foge aos ditames do pensamento
analítico. (CASSIRER, 1994, p. 674).
Essa passagem de Cassirer é
corroborada por Araújo, ao afirmar que “como primeira forma simbólica efetivada
pela cultura humana, funda-se a partir das sensações imediata dos homens, cuja
estrutura é elaborada fora dos parâmetros reflexivos da linguagem”. (ARAÚJO,
2004, p. 75).
Já o Cientista das Religiões, Mircea Eliade (1907-1986), um dos mais
influentes estudiosos da religião do século XX, e um dos mais importantes
intérpretes do simbolismo religioso e do mito, viu nesse último, um modelo
exemplar de conduta, pois, narra acontecimentos em tempos primordiais. Ao
abordar a problemática do mito, no mundo moderno afirma que, “a compreensão do
mito contará um dia entre os descobrimentos mais úteis do século XX”. (ELIADE,
1972 apud PRATA, 2002, p. 108).
Em sua obra O sagrado e o profano:
a essência das religiões, Eliade escreve:
O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento
primordial que teve lugar no começo do Tempo. Mas contar uma história sagrada
equivale a revelar um Mistério, porque os personagens do mito não são seres
humanos. São deuses ou heróis civilizadores: o homem não podia conhecê-los se
não lhos revelassem. O mito é, pois, a história do que se passou in illo (naquele tempo), a narração
daquilo que os Deuses ou os seres divinos fizeram no começo do tempo. Dizer um
mito é proclamar o que se passou ab origine
(desde a origem). Uma vez dito, quer dizer, revelado, o mito torna-se
verdade apodítica: funda a verdade absoluta. (ELIADE, 2010, p. 84).
Ainda segundo ele, “a função mais importante do mito é, pois, fixar os
modelos exemplares de todos os ritos e de todas as culturas humanas
significativas: alimentação, sexualidade, trabalho, educação” [...]. (ELIADE,
2010, p. 87).
Entretanto, segundo afirma Bastazin (2006), é na segunda metade do
século XIX que vão surgir as principais escolas de estudo do mito. A primeira a
surgir no Ocidente, foi a Escola Naturalista ou Mitológica. Essa escola foi
inspirada na mitologia alemã de Jacob Grimm (1785-1863), irmão de Wilhelm Grimm
(1786-7859). Os irmãos Grimm foram dois escritores alemães que dedicaram suas vidas
ao registro escrito de fábulas e contos narrados em sua época.
Ainda segundo Bastazin, o linguista, cientista das religiões e mitólogo,
Max Müller (1823-1900), foi líder dessa escola que se destacou por seus estudos
da mitologia ariana e pela concepção de mito como resultado da “patologia da
língua” ou “engano de linguagem” que explica a gênese do mito pelos erros e
ilusões involuntárias [...]. Em sua obra Essay
on comparativ methodology (Ensaio sobre metodologia comparativa), segundo Simões (1998, p. 86),
“Müller abre uma série de estudos e procura explicar a criação dos mitos por
meio dos fenômenos naturais, sobretudo as epifanias do sol e o nascimento dos
deuses por uma “doença da linguagem” [...] Ainda segundo ele, “as teses de
Müller obtiveram grande aceitação no seu tempo, mas, posteriormente, com a
evolução da filosofia, e, de modo especial com a teoria do animismo de Edward
Burnett Tylor, perderam sua repercussão”. (Ibidem).
Um testemunho que corrobora a passagem anterior é a de Schmidt, citado pelo
professor de Ciência da Religião da PUC-SP, Frank Usarski, em seu artigo O caminho
da institucionalização da Ciência da Religião: reflexões sobre a fase formativa
da disciplina, em que afirma que “Max Müller, o grande popularizador da
escola mitológica-natural tornou-se o objetivo preferido de escárnio. Cada vez
mais desafiado por um paradigma alternativo, o da escola animista de Edward
Burnett Tyler, Müller precisou a desmontagem da sua abordagem”. (SCHMIDT, pp.
37-39 apud USARSKI 2006, p. 24). Apesar
disso, é preciso frisar, segundo Hardy, também citado por Usarski (2006, p.
24), que Müller, é respeitado como um dos pioneiros da Ciência da Religião,
pois, além de ter instituído o status da
disciplina, despertou com suas teses polêmicas, enorme interesse público para a
nova matéria e incentivou em vários sentidos o uso das fontes.
A segunda escola segundo Bastazin (2006) é chamada de Escola
Antropológica, que foi o resultado dos primeiros passos científicos da
etnografia comparativista. O grande representante dessa escola foi o
antropólogo Sir Edward Burnett Tylor, que centrou seus estudos na comparação
entre tribos arcaicas e o homem civilizado, postulando a evolução cultural
linear. Segundo Rocha, os mitos para Tylor supunham dois níveis distintos:
No primeiro entre os “primitivos” a criação mítica se prestava a um
desejo do entendimento dos fenômenos naturais. No segundo nível, nas sociedades
mais “adiantadas”, ela poderá ser o reflexo de acontecimentos históricos e
tradições culturais. A teoria animista se dedica a explicar os níveis mais
“primitivos” da criação mítica [...] mas os estudos de Tylor dedicavam-se
também a religião como um todo. (ROCHA, 2017, p. 54).
Ainda segundo Rocha, Tylor vincula a interpretação do mito à religião e
à evolução das sociedades e abordava a criação mítica como um desejo de
entender os fenômenos naturais como reflexo de acontecimentos históricos e
tradições culturais.
Na esfera estruturalista há a importante contribuição do filósofo e
antropólogo Lévi-Strauss (1908-2009), que considera o mito como uma estrutura
permanente, na qual a função significante provém de feixes de relações entre
unidade constitutivas do mito. De acordo com Turner (1997, p. 76),
“Lévi-Strauss, estudou a natureza dos mitos e das lendas nas culturas antigas e
primitivas. Acreditava que partindo deles, poderia desenredar as estruturas de
significado e significâncias que diferenciavam um sistema cultural de outro”.
No entanto, a maior contribuição de Lévi-Strauss, “é metodológica, com a
leitura das unidades constituintes do mito, uma horizontal ou diacrônica e
outra vertical ou sincrônica. Através desse método de leitura, salienta-se a
estrutura folheada do mito, que transparece pelo processo de repetição”.
(ALMEIDA, 2014, p. 34).
O mito possui várias funções. Sua narrativa desempenha uma função social
essencial que o torna indispensável para as comunidades humanas. Além dessa
função social, Chauí (2000), elenca ainda várias outras, tais como: explicar,
organizar e compreender. Para a primeira função, segundo a autora, o mito,
explica no presente algo que aconteceu no passado, cujos efeitos não foram
apagados pelo tempo; para a segunda, o mito organiza as relações sociais de
modo a legitimar e a determinar um sistema complexo de permissões e proibições;
e, finamente, o mito conta algo que aconteceu e não mais é possível de
acontecer, mas serve tanto para compensar os humanos por alguma perda, como
para garantir-lhes que esse erro foi corrigido no presente.
Entretanto, atualmente o mito é entendido tanto no sentido de uma ficção
ou ilusão, como no sentido de tradição sagrada, revelação primordial, modelo
exemplar, por isso, há um crescente interesse por parte de alguns estudiosos,
na retomada dos estudos sobre o tema, pois, redescobriu-se a força
sensibilizadora e mobilizante da narração dos mitos. De acordo com Armstrong “o
recente renascimento do interesse pela mitologia talvez indique o desejo
generalizado de uma expressão mais imaginativa da verdade religiosa”.
(ARMSTRONG, 2008, p. 13). Por outro lado, Almeida (2002, p. 28), afirma que “o
mito não serve como fundamento para o conhecimento, mas pode ser um produtivo
ponto de partida para o diálogo filosófico e para uma investigação científica”.
Essa retomada é importante, uma vez que, para quem vive numa sociedade de mídia
e consumo, é de suma importância que se aprenda a interpretar as mensagens
subliminares presentes nos mitos antigos, pois, eles nos oferecem recursos que
ajudam a construir uma cultura comum para os indivíduos em todas as regiões do
planeta.
Nesse sentido, um dos estudiosos atuais mais importantes que nos
possibilita a entender alguns aspetos sobre o desenvolvimento do estudo do mito
é o alemão, estudioso da mitologia grega, Walter Burkert (1931-2015). Ele nos
legou um conjunto de obras importantes que versam sobre o tema e vários outros
aspetos ligados à problemática religiosa. Assim destacamos as seguintes obras: Mito e mitologia; Antigos cultos do
mistério; A criação do Sagrado; Religião grega na época clássica e arcaica
[...].
De acordo com Pereira (2014, p. 14), Burkert é um dos maiores estudiosos
que vinha ocupando com o estudo do mito e da religião grega na atualidade.
Segundo ela, isso pode ser verificado através de numerosas obras, especialmente
numa série de conferências na Universidade de Berkeley, proferidas sete anos
mais tarde com a designação de Structure
and history in Greek mythodology and ritual. Além disso, Burkert dedicou o
seu trabalho antropológico, segundo Novaes (2015), à gênese do processo de
hominização, apreendendo o desenvolvimento histórico da cultura humana de um
modo mais correto e verificável do que nas teorias de Girard sobre violência e
o sagrado, de modo a formular hipóteses falsificáveis a respeito dessas
origens.
Pereira (2017) refere em sua recensão à obra de Burkert, Structure and History in Greek Mythology and
Ritual (1979) que, para obter uma definição de mito, Burkert procede por
aproximações, utilizando algumas das teses mais conhecidas para superar as suas
limitações. Ele aceita provisoriamente a teoria de Kirk, de que “o mito
pertence à classe mais genérica do conto tradicional”, para mostrar que o que
constitui a característica principal do mito não é a sua criação, mas a sua
transmissão e preservação. Nessa obra, Burkert elabora a seguinte definição: “O
mito é um conto tradicional com referência secundária e parcial a algo de
importância coletiva”. Essa ideia de importância coletiva do mito é reforçada
em uma outra passagem na obra, A criação
do sagrado em que o autor afirma que “contrariamente ao seu ponto de
partida, os mitos não são de ordem pessoal, mas sim geral, ou seja, uma
propriedade comum de um grupo ou tribo que ajuda a construir a sua consciente
identidade grupal”. (BURRKET, 2001, p, 86). De acordo com o nosso autor,
O mito neste sentido nunca existe ‘puro’ em si, mas tal por alvo a
realidade; o mito é simultaneamente uma metáfora ao nível da narração. A
seriedade e dignidade do mito procedem desta ‘aplicação’: um complexo de
narrativas tradicionais proporciona o meio primário de concatenar experiência e
projeto da realidade e de o exprimir em palavras, de o comunicar e dominar, de
ligar o apresente ao passado e simultaneamente de canalizar as expectativas do
futuro”. (BURRKET, 1991, p. 17).
Nesse novo contexto do estudo dos mitos, Pinheiro (2001, p. 18), afirma
que, para Burkert, mito não tem nada a ver com mística. A palavra grega mythos significa fala, narração,
concepção. No tempo do Iluminismo grego[4],
contudo, transformou-se no termo próprio para designar à distância as velhas
narrativas, que não eram verdadeiramente para serem tomadas a sério. Apesar
disso, o mito revela- se numa cultura superior, adulta e madura [...]. Em sua
obra Mito e mitologia, Burkert define
o mito objetivamente como sendo uma narrativa tradicional aplicada ou um saber
por histórias. (BURKERT, 1991, p. 17). Porém, ainda na mesma obra, Burkert,
fala-nos de certa ambiguidade ligada à noção de mito, na medida em que este é
entendido como “algo ilógico, inverossímil ou impossível, talvez imoral, e, de
qualquer modo falso, mas ao mesmo tempo compulsivo, fascinante, profundo e
digno, quando não mesmo sagrado”. (Ibidem, p.15). Para desmistificar o
conceito, Pereira (2017), cita Burkert (1979), que afirmara o seguinte:
Mito é um conto tradicional aplicado, e a sua relevância e seriedade
radicam largamente na sua aplicação. Os fenómenos de importância coletiva que
são verbalizados pela aplicação de contos tradicionais são os da vida social,
do ritual religioso, do medo dos fenómenos da natureza, da experiência da
doença, e problemas gerais da sociedade humana. (PEREIRA, 2017, p. 324).
Esta definição, segundo a mesma autora, tem o seu complemento na atenção
prestada à dimensão histórica. Ao contrário dos estruturalistas, Burkert
reconhece e sublinha a importância dos níveis históricos do mito,
correspondentes às suas diversas aplicações. (ibidem). Assim, para o nosso
autor, o mito como “narrativa aplicada”, como referimos, possui várias funções,
de entre as quais podemos citar: explicar rituais, esboçar reivindicações
familiares, orientar o cominho no mundo dos vivos e dos mortos, assim
como, estabelecer o sentimento de unidade em instituições recém-fundadas
etc.
Como se pode constatar, a contribuição de Burkert é de extrema
importância fazendo jus a tudo o que foi citado anteriormente, tendo em conta
que, como sistema de comunicação, o mito é fundamental, pois, ele é o link que permite estabelecer uma relação
temporal e sequencial entre as elaborações anteriores (passado), com as atuais
(presente) para que se possa elaborar novas perspectivas rumo ao futuro.
Considerações finais
Após tudo o que foi exposto ao longo da pesquisa, acredito que, todas os
pontos de vista e teorias relativamente ao mito, foram e ainda são importantes,
pois, cada um dos pensadores citados, analisou o mito a partir de uma
perspectiva cultural e com uma visão pessoal dentro do espectro das suas
respetivas disciplinas. Mas, a certeza que fiquei, é que o mito é uma
caraterística universal da condição humana, porque estabelece parâmetros de
como viver num mundo que faz sentido.
O mito não pertence à ordem subjetiva ou pessoal, mas sim objetiva e
geral, ou seja, é um construto e uma propriedade comum de um povo
historicamente e geograficamente localizado que ajuda a construir e a reforçar
a identidade grupal, pois, apontando os valores mais altos e as crenças mais
sagradas de um povo, englobando todos os aspetos que definem uma visão de
mundo.
Não há dúvidas que, mesmo com todo o avanço científico e tecnológico os
mitos ainda permeiam, constroem e povoam nosso imaginário. Por mais distantes
que estejam os mitos originários, ainda continuamos imersos num universo cheio
de contos fantásticos com personagens e narrativas que nos ajudam a construir
um sentido para as coisas ainda inexplicadas e inexplicáveis.
Acredito que a influência do senso comum foi e é fundamental na
construção das nossas crenças íntimas, portanto, ele é o principal formador de
mitos. O senso comum tem para com o mito a mesma relação que o conceito tem
para com a alegoria, ou seja, dá sustentação a uma verdade, que pode se manter
por muito tempo, mas se cristaliza, caduca e perde a validade. Mas, por outro
lado, o mito não é uma história, e nem tem essa pretensão, mas também não é
mentira, como o senso comum costuma entender, pois, os mitos são a metáfora da
vida e do homem.
Por isso, o mito comporta uma função social muito importante, pois
contribui para conter a ansiedade coletiva na busca para uma explicação quando
a complexidade dos fenômenos ultrapassam os limites da nossa racionalidade. O
mito possui um caráter pragmático, mas seu sucesso não é mensurado
valorativamente, mas sim pela eficácia real no mundo social onde vivemos e nos
relacionamos. Portanto, nesse aspecto, a mitologia e os mitos têm uma função
psicológica organizadora, estruturada e funcional da sociedade como um todo, uma
vez que se trata de algo construído, sem comprovação prática.
Relativamente às relações entre mito, ciência a teologia, observa-se
que, no primeiro caso, as discrepâncias fundamentais surgem a parir de
propósitos diferentes e de métodos também diferentes. Não obstante as gritantes
diferenças, eles se dedicam o mesmo fim, o seja, a tarefa explicativa. O mito
avançou ao lado do trabalho científico, e apesar de ser considerado um
conhecimento inferior, muitas vezes “fabuloso”, seu papel normativo ainda é
importante. Relativamente ao segundo ponto, acredito que, é fundamental
abrirmos para a possibilidade de que todo o pensamento mítico contém um
pensamento teológico e vice versa. Pois, vários mitos revelam por vezes
profundas percepções teológicas, e, várias passagens em documentos considerados
sagrados para os religiosos são basicamente narrativas míticas, mas com um
sentido real.
Do ponto de vista da Ciência da Religião, acredito que seja fundamental
o estudo e a compreensão do mito, pois, como categoria universal e atemporal, o
mito faz parte do mundo real e concreto, objeto de estudo por excelência do
cientista da religião. Mas, acredito também que, apesar dos estudos empíricos,
existe espaço também para reflexões mais teóricas de cunho filosófico e
teológico, pois, como se sabe, o mito permeia todas as dimensões da condição
humana. Por isso, seu estudo deve ser amplo e diverso, pois, quanto mais
olhares sobre o fenômeno, mais elementos termos para examiná-lo. Como elemento
primordial da cultura humana cuja função de situar o homem no cosmos de modo a
organizá-lo e atribuir-lhe sentido, deve ser matéria de estudo para todos que
se dediquem ao estudo do homem em suas múltiplas dimensões.
Referências
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[2] Lendo a Sinopse
da obra citada ficamos cientes de que, até Totem e tabu Freud, se limitara a obras dedicadas à
psicanálise. Porém, a indagação quanto às origens e ao modo de transmissão de
uma cultura conduziu sua atenção para a antropologia e para a etnopsicologia;
ele nos primeiros homens mecanismos semelhantes aos operantes no homem moderno.
Detectou dois fenômenos recorrentes nas tribos primitivas: a representação do
pai primordial na forma do totem e o tabu do incesto. Por meio de uma “dedução
histórica”, ele propõe a hipótese do “pai tirano”, cujo assassinato pelos
filhos estaria na base do sentimento de culpa, da exogamia e da religião.
Considerada pelo próprio autor uma de suas obras mais importantes, Totem e
tabu sinaliza a aproximação da psicanálise às humanidades. Esta edição
traz o texto traduzido do alemão, possibilitando ao leitor brasileiro o contato
direto com um dos trabalhos freudianos mais elegantes e aprazíveis.
[3]
De acordo com Cassirer (2003, p. 22), no “The Golden bough (o ramo dourado), Sir
James Frazer tornou-se um rico manancial para toda a espécie de pesquisas
antropológicas. Nos seus quinze volumes contém-se material recolhido em todas
as partes do mundo e das mais heterogêneas fontes”.
[4] O renascimento
cultural europeu, alicerçado no iluminismo grego, colocou em evidencia a
antiguidade clássica, cujo cerne da reflexão filosófica é a tese da autonomia
da razão como procedimento para o conhecimento avançar rumo ao desconhecido.