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sábado, 16 de dezembro de 2017

Mito & Mitos: origem, natureza e limites

  

Arlindo Nascimento Rocha[1]

O mito não se importava com contradições, com o fabuloso e incompreensível, não só porque esses eram traços da narrativa mítica, como também porque a confiança e a crença no mito vinham da autoridade religiosa do narrador.
[CHAUÍ, 2003, p. 25].

Resumo
O estudo sobre o mito como categoria fundante da tradição humana é fundamental, pois, através dele acessamos um conhecimento que outrora era tido como discurso factual e verdadeiro. Nesse aspecto, questionar a factualidade ou a veracidade de um mito era uma heresia. Em estudos de suma importância, encontramos a concepção de mito como sendo oriundo de vários domínios do conhecimento humano. Por isso, nosso objetivo com esse artigo é fazer uma investigação sobre a origem, os limites e a natureza dos mitos em nossa sociedade. Nossa pesquisa terá como suporte a investigação e revisão bibliografia que versa sobre o tema, para desenvolver a pesquisa, e, na conclusão apresentaremos nossa análise.
  


Mito & Mitos: Origem, Natureza e Limites

É inquestionável a presença dos mitos na vida dos homens desde sempre. Então, conhecer os diversos mitos é aprender o segredo das origens das coisas, pois, sua função soberana é revelar modelos exemplares de todas as atividades humanas. Com isso, ele se torna um elemento essencial da civilização. Por isso, estudar os mitos nos leva a compreender a história do homem, sua cultura, suas crenças e valores. Pois, “o mito narra a origem das coisas por meio de lutas, alianças e relações sexuais entre forças sobrenaturais, que governam o mundo e o destino dos homens”. (CHAUÍ, 2009, p. 24).

O que não se pode explicar pela razão e pelo saber disponível é compensado pelos mitos ou pelo sobrenatural. Para os gregos, segundo Pereira (2014, p. 7), “a palavra mito, designava desde os Poemas de Homero, uma forma de discurso. Daí passará ao significado de narrativas, real ou fictícia, e, neste ultimo sentido, começará a opor-se ao Logos que se aplica à história verídica”.

Etimologicamente, a palavra mito, vem do grego mythos, e deriva de dois verbos: do verbo mytheyo (contar, narrar, falar) e do verbo mytheo (conversar, contar, anunciar, nomear). Os mitos podem ser divididos em duas categorias: os cosmogónicos (narrativas sobre o nascimento e a organização do mundo) e os teogônicos (narrativa da origem dos deuses a partir de seus antepassados). Segundo Marilena Chauí: 
Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele que narra, é uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador. Essa autoridade vem do fato de que ele testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem a testemunhou os acontecimentos narrados. (CHAUÍ, 2003, p. 23).
    
Tradicionalmente, definimos mito como sendo histórias tradicionais, quase sempre sobre deuses, heróis e criaturas do mundo animal, que explicam por que o mundo é do jeito que é. Para Armstrong (2008, p. 269), a palavra mito, é muitas vezes usada como sinônimo de mentira: na linguagem popular, mito é algo não verdadeiro. Mas, a concepção epistemológica do conceito de mito é muito mais abrangente do que isso. Pois, segundo Ramos (2006, p. 19), “os mitos moldam nossa percepção do mundo e dos fenômenos que nos propomos estudar. Foram criados durante a busca de significado da vida e, por meio deles, passamos a ter uma compreensão mais racional do mundo que nos cerca”. Os mitos antigos, de acordo com Reñones (2004, p. 150), podem realmente comunicar algo [...]. Eles têm algo a dizer como as pinturas rupestres, as danças eslavas, os poemas de Bashô ou qualquer outra manifestação criativa antiga tem [...]. Segundo Burkert, “o mito deve ter um significado especial e intelectual em relação à sociedade e é um fenômeno multidimensional”. (BURKERT apud PEREIRA, 2014, p. 16).     

Entretanto, antes de mais é importante ressaltar que, uma das caraterísticas do mito é que seu discurso funda-se basicamente sob os alicerces da construção metafórica. O mitólogo Joseph Campbell, reforça essa ideia, afirmando que, “mitos são metáforas da potencialidade espiritual do ser humano. Eles nos relacionam com a natureza e com o mundo natural”. (CAMPBELL, 1992, p. 6 apud RAMOS, 2006, p. 19). Segundo Armstrong, “Campbell tornou-se extremamente popular: ele explora a mitologia perene da humanidade, relacionando mitos antigos com os que ainda perduram em sociedades tradicionais”. (ARMSTRONG, 2008, p. 13).

O Filósofo Italiano Nicola Abbagnano (1901-1990), nos mostra que historicamente é possível distinguir três significados do termo. Primeiro: como forma atenuada de intelectualidade; segundo: como forma autônoma de pensamento; terceiro: como instrumento de estudo social. Assim, segundo ele, considerando os três casos específicos afirma-se que:
No primeiro caso, na antiguidade clássica, o mito era considerado um produto inferior ou deformado da atividade intelectual. A ele, era atribuído no máximo, “verossimilhança” enquanto a “verdade” pertencia aos produtos genuínos do intelecto (posição de Aristóteles e Platão);

No segundo caso, como forma de pensamento autônomo, a validade e a função do mito não são subordinadas ao conhecimento racional, situando-se num plano diferente do plano do intelecto, porém, dotado de igual dignidade (posição defendida por Gianbattista Vico); e,

No terceiro caso, como teoria sociológica, o mito é uma justificação retrospectiva dos elementos fundamentais que constituem a cultura de um grupo, pois, o mito não é uma simples narrativa, nem forma de ciência, nem ramo de arte ou de história, nem narração explicativa. Cumpre uma função sui generis, intimamente ligada à natureza da tradição, à continuidade da cultura, à relação entre maturidade e juventude e à atitude humana em relação ao passado. Sua função é reforçar a tradição e dar-lhe maior valor, prestígio, vinculando-a, a mais elevada, melhor e mais sobrenatural realidade dos acontecimentos iniciais (posição de Frazer e Malinowski). (ABBAGNANO, 2007, pp. 784-786).   
    
 Na esteia de Abbagnano que aponta três significados para o termo historicamente localizados, Cabral (2012) aponta as caraterísticas básicas dos mitos. Segundo ele, “em síntese, são três a características básicas do mito como tipo de conhecimento: crença, uso da imaginação (na ausência de uma argumentação racional), tradição oral ou narrativa”. (CABRAL, 2012, p. 30). Assim, o mito desafia nossos pensamentos, e, por isso, ao longo da história, muitos teóricos procuraram explicações para tal. A evolução que se deu através dos estudos antropológicos, sociológicos, filosóficos e psicológicos permitiu o desenvolvimento da interpretação que se dá atualmente aos mitos. Então, apresentarei sinteticamente a visão de alguns estudiosos que se dedicaram ainda que não especificamente ao estudo dos mitos, mas, que pela natureza de suas pesquisas, foi importante refletir sobre os mesmos. 

De acordo com Horta (2013), o antropólogo polaco, Bronisław Kasper Malinowski (1884-1942), entendeu que todo mito contém em seu núcleo um acontecimento natural qualquer elaboradamente tecido em uma história. Malinowski, afirma que o mito:
[...] Não é uma explicação destinada a satisfazer uma curiosidade científica, mas uma narrativa que faz viver uma realidade original e que responde a uma profunda necessidade religiosa, as aspirações morais a constrangimentos e imperativos de ordem social e, até, de exigências práticas. (MALINOWSKI, 1995 apud SCHOCK, 2008, p. 247). 

Malinowski, foi o representante da escola funcionalista e através de seus estudos empíricos em Trobiand afirmou que, o mito preenche, na cultura primitiva, uma função indispensável, pois, é produto de uma fé viva que serve para codificar e reforçar normas grupais, salvaguardar as regras e a moralidade e promover a coesão social. Para ele, “a história da origem contém o estatuto legal da comunidade” (MALINOWSKI, 1988, p. 119), e uma autêntica “carta social” que sustenta a manutenção do poder, do privilégio e da propriedade.

A mitologia muitas vezes constitui uma tentativa de explicar o mundo interior da psique. Assim, para o médico neurologista, criador da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), de família judaica, oriundo de Freiberg in Mähren (Império Austríaco), atualmente pertence à República Tcheca via o mito, como um disfarce da sexualidade e uma onipotência do pensamento. Ele voltou para os mitos antigos, como a história de Édipo, para explicar a nova ciência. Entretanto, um dos mitos que ele propôs, quando interpretado literalmente pode parecer tolo quando comparado como um fato científico. Segundo Leifer (2000, p. 155), Freud disse que o primeiro passo ruma à civilização e à domesticação do fogo, que resultou da opressão e da inibição do ‘erotismo uretral’ [...]. Segundo o mesmo autor, ele imaginava que os homens primitivos apagavam o fogo urinando em cima dele [...], portanto, a inibição do desejo de apagar o fogo urinando resultou na domesticação do fogo. Assim, Freud escreveu: “o primeiro que foi capaz de negar a si mesmo esse prazer e poupar o fogo conseguiu levar o fogo consigo e domá-lo para o seu serviço”. (LEIFER, 2000, p. 155). Segundo Eassirer, (2003, p.48), “quando Sigmund Freud começou a publicar seus artigos sobre ‘Totem e tabu'[2], em 1913, o problema do mito atingira um ponto crucial. Filólogos, antropólogos e etnólogos tinham oferecido suas diferentes teorias sobre o mito”.

Para o antropólogo James Frazer (1854-1941), não há um limite que separa a magia da ciência, a primeira é a pseudociência, tendo em conta que, ambas buscam a realidade. Segundo Gebara et al (2014), Frazer chegou a publicar uma coleção de mitos das origens do fogo, Myths of origin of the fire, em 1930. Eles são de opinião que a coleção permanece valiosa, mesmo que o titulo seja enganoso, pois, os contos não são sobre ‘as origens do fogo’ mas sobre as origens da posse humana exclusiva do fogo. De acordo com Pearsall, Frazer, escreveu um livro sobre mitologia arcaica, chamado The Golden bough (o ramo dourado)[3].  Nessa obra, ele afirma que a história da cultura se divide em três fases de desenvolvimento: ignorância mitológica; fé religiosa e um estágio utópico de ‘razão pura’.  Frazer afirma que a raça humana saiu lentamente do modo mágico rumo à religiosidade até finalmente conhecer a luz da ciência e da racionalidade. (PEARSALL, 2011, p. 95). 

Frazer não estava sozinho, uma vez que, segundo Cassirer (2003, p. 25), “continuava uma tradição que remontava os primórdios da antropologia científica no século XIX”. Segundo ele, Sir Edward Burnett Tylor (que retomaremos mais adiante), publicou o seu livro Cultura primitiva onde ele considerava que não existe qualquer diferença essencial na mente de um selvagem e de um homem civilizado. “Edward Burnett Tylor descreveu o mito como uma filosofia selvagem”. (CASSIRER, 2003, p.48).

Já o sociólogo Émile Durkheim (1858-1917), embora não tenha estudado os mitos em si, mas o fez enquanto premissa de que eles nos ajudam a entender as ideias sobre a religião, pois, sem o estudo dos mesmos é impossível entender o que quer que seja de uma religião. Neste sentido, para Durkheim, os mitos são somente uma parte das crenças religiosas. enxergou na sociedade, o verdadeiro núcleo do mito, ou seja, uma projeção social que reflete as características cultivadas fundamentais da vida coletiva. Ele postulou que os mitos refletiam a estruturas sociais de uma dada cultura.

Para o filósofo alemão, Ernest Cassirer (1874-1945), o mito é produto da emoção. Em sua obra Um Ensaio sobre o homem, Cassirer, argumenta que:  
O mito tem dupla face: de um lado, mostra uma estrutura conceitual e, de outro uma perceptual. Não pode ser considerado como uma amálgama de ideias sem sentido. Sua logicidade está circunscrita em uma determinada percepção de mundo. O mito é um estágio da percepção que foge aos ditames do pensamento analítico. (CASSIRER, 1994, p. 674). 

 Essa passagem de Cassirer é corroborada por Araújo, ao afirmar que “como primeira forma simbólica efetivada pela cultura humana, funda-se a partir das sensações imediata dos homens, cuja estrutura é elaborada fora dos parâmetros reflexivos da linguagem”. (ARAÚJO, 2004, p. 75).
 
Já o Cientista das Religiões, Mircea Eliade (1907-1986), um dos mais influentes estudiosos da religião do século XX, e um dos mais importantes intérpretes do simbolismo religioso e do mito, viu nesse último, um modelo exemplar de conduta, pois, narra acontecimentos em tempos primordiais. Ao abordar a problemática do mito, no mundo moderno afirma que, “a compreensão do mito contará um dia entre os descobrimentos mais úteis do século XX”. (ELIADE, 1972 apud PRATA, 2002, p. 108).

Em sua obra O sagrado e o profano: a essência das religiões, Eliade escreve:
O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo. Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um Mistério, porque os personagens do mito não são seres humanos. São deuses ou heróis civilizadores: o homem não podia conhecê-los se não lhos revelassem. O mito é, pois, a história do que se passou in illo (naquele tempo), a narração daquilo que os Deuses ou os seres divinos fizeram no começo do tempo. Dizer um mito é proclamar o que se passou ab origine (desde a origem). Uma vez dito, quer dizer, revelado, o mito torna-se verdade apodítica: funda a verdade absoluta. (ELIADE, 2010, p. 84). 

Ainda segundo ele, “a função mais importante do mito é, pois, fixar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as culturas humanas significativas: alimentação, sexualidade, trabalho, educação” [...]. (ELIADE, 2010, p. 87).   

Entretanto, segundo afirma Bastazin (2006), é na segunda metade do século XIX que vão surgir as principais escolas de estudo do mito. A primeira a surgir no Ocidente, foi a Escola Naturalista ou Mitológica. Essa escola foi inspirada na mitologia alemã de Jacob Grimm (1785-1863), irmão de Wilhelm Grimm (1786-7859). Os irmãos Grimm foram dois escritores alemães que dedicaram suas vidas ao registro escrito de fábulas e contos narrados em sua época.

Ainda segundo Bastazin, o linguista, cientista das religiões e mitólogo, Max Müller (1823-1900), foi líder dessa escola que se destacou por seus estudos da mitologia ariana e pela concepção de mito como resultado da “patologia da língua” ou “engano de linguagem” que explica a gênese do mito pelos erros e ilusões involuntárias [...]. Em sua obra Essay on comparativ methodology (Ensaio sobre metodologia comparativa), segundo Simões (1998, p. 86), “Müller abre uma série de estudos e procura explicar a criação dos mitos por meio dos fenômenos naturais, sobretudo as epifanias do sol e o nascimento dos deuses por uma “doença da linguagem” [...] Ainda segundo ele, “as teses de Müller obtiveram grande aceitação no seu tempo, mas, posteriormente, com a evolução da filosofia, e, de modo especial com a teoria do animismo de Edward Burnett Tylor, perderam sua repercussão”. (Ibidem).

Um testemunho que corrobora a passagem anterior é a de Schmidt, citado pelo professor de Ciência da Religião da PUC-SP, Frank Usarski, em seu artigo O caminho da institucionalização da Ciência da Religião: reflexões sobre a fase formativa da disciplina, em que afirma que “Max Müller, o grande popularizador da escola mitológica-natural tornou-se o objetivo preferido de escárnio. Cada vez mais desafiado por um paradigma alternativo, o da escola animista de Edward Burnett Tyler, Müller precisou a desmontagem da sua abordagem”. (SCHMIDT, pp. 37-39 apud USARSKI 2006, p. 24). Apesar disso, é preciso frisar, segundo Hardy, também citado por Usarski (2006, p. 24), que Müller, é respeitado como um dos pioneiros da Ciência da Religião, pois, além de ter instituído o status da disciplina, despertou com suas teses polêmicas, enorme interesse público para a nova matéria e incentivou em vários sentidos o uso das fontes.   
         
A segunda escola segundo Bastazin (2006) é chamada de Escola Antropológica, que foi o resultado dos primeiros passos científicos da etnografia comparativista. O grande representante dessa escola foi o antropólogo Sir Edward Burnett Tylor, que centrou seus estudos na comparação entre tribos arcaicas e o homem civilizado, postulando a evolução cultural linear. Segundo Rocha, os mitos para Tylor supunham dois níveis distintos:
No primeiro entre os “primitivos” a criação mítica se prestava a um desejo do entendimento dos fenômenos naturais. No segundo nível, nas sociedades mais “adiantadas”, ela poderá ser o reflexo de acontecimentos históricos e tradições culturais. A teoria animista se dedica a explicar os níveis mais “primitivos” da criação mítica [...] mas os estudos de Tylor dedicavam-se também a religião como um todo. (ROCHA, 2017, p. 54).

Ainda segundo Rocha, Tylor vincula a interpretação do mito à religião e à evolução das sociedades e abordava a criação mítica como um desejo de entender os fenômenos naturais como reflexo de acontecimentos históricos e tradições culturais.

Na esfera estruturalista há a importante contribuição do filósofo e antropólogo Lévi-Strauss (1908-2009), que considera o mito como uma estrutura permanente, na qual a função significante provém de feixes de relações entre unidade constitutivas do mito. De acordo com Turner (1997, p. 76), “Lévi-Strauss, estudou a natureza dos mitos e das lendas nas culturas antigas e primitivas. Acreditava que partindo deles, poderia desenredar as estruturas de significado e significâncias que diferenciavam um sistema cultural de outro”. No entanto, a maior contribuição de Lévi-Strauss, “é metodológica, com a leitura das unidades constituintes do mito, uma horizontal ou diacrônica e outra vertical ou sincrônica. Através desse método de leitura, salienta-se a estrutura folheada do mito, que transparece pelo processo de repetição”. (ALMEIDA, 2014, p. 34).

O mito possui várias funções. Sua narrativa desempenha uma função social essencial que o torna indispensável para as comunidades humanas. Além dessa função social, Chauí (2000), elenca ainda várias outras, tais como: explicar, organizar e compreender. Para a primeira função, segundo a autora, o mito, explica no presente algo que aconteceu no passado, cujos efeitos não foram apagados pelo tempo; para a segunda, o mito organiza as relações sociais de modo a legitimar e a determinar um sistema complexo de permissões e proibições; e, finamente, o mito conta algo que aconteceu e não mais é possível de acontecer, mas serve tanto para compensar os humanos por alguma perda, como para garantir-lhes que esse erro foi corrigido no presente. 

Entretanto, atualmente o mito é entendido tanto no sentido de uma ficção ou ilusão, como no sentido de tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar, por isso, há um crescente interesse por parte de alguns estudiosos, na retomada dos estudos sobre o tema, pois, redescobriu-se a força sensibilizadora e mobilizante da narração dos mitos. De acordo com Armstrong “o recente renascimento do interesse pela mitologia talvez indique o desejo generalizado de uma expressão mais imaginativa da verdade religiosa”. (ARMSTRONG, 2008, p. 13). Por outro lado, Almeida (2002, p. 28), afirma que “o mito não serve como fundamento para o conhecimento, mas pode ser um produtivo ponto de partida para o diálogo filosófico e para uma investigação científica”. Essa retomada é importante, uma vez que, para quem vive numa sociedade de mídia e consumo, é de suma importância que se aprenda a interpretar as mensagens subliminares presentes nos mitos antigos, pois, eles nos oferecem recursos que ajudam a construir uma cultura comum para os indivíduos em todas as regiões do planeta.
  
Nesse sentido, um dos estudiosos atuais mais importantes que nos possibilita a entender alguns aspetos sobre o desenvolvimento do estudo do mito é o alemão, estudioso da mitologia grega, Walter Burkert (1931-2015). Ele nos legou um conjunto de obras importantes que versam sobre o tema e vários outros aspetos ligados à problemática religiosa. Assim destacamos as seguintes obras: Mito e mitologia; Antigos cultos do mistério; A criação do Sagrado; Religião grega na época clássica e arcaica [...].

De acordo com Pereira (2014, p. 14), Burkert é um dos maiores estudiosos que vinha ocupando com o estudo do mito e da religião grega na atualidade. Segundo ela, isso pode ser verificado através de numerosas obras, especialmente numa série de conferências na Universidade de Berkeley, proferidas sete anos mais tarde com a designação de Structure and history in Greek mythodology and ritual. Além disso, Burkert dedicou o seu trabalho antropológico, segundo Novaes (2015), à gênese do processo de hominização, apreendendo o desenvolvimento histórico da cultura humana de um modo mais correto e verificável do que nas teorias de Girard sobre violência e o sagrado, de modo a formular hipóteses falsificáveis a respeito dessas origens.   

Pereira (2017) refere em sua recensão à obra de Burkert, Structure and History in Greek Mythology and Ritual (1979) que, para obter uma definição de mito, Burkert procede por aproximações, utilizando algumas das teses mais conhecidas para superar as suas limitações. Ele aceita provisoriamente a teoria de Kirk, de que “o mito pertence à classe mais genérica do conto tradicional”, para mostrar que o que constitui a característica principal do mito não é a sua criação, mas a sua transmissão e preservação. Nessa obra, Burkert elabora a seguinte definição: “O mito é um conto tradicional com referência secundária e parcial a algo de importância coletiva”. Essa ideia de importância coletiva do mito é reforçada em uma outra passagem na obra, A criação do sagrado em que o autor afirma que “contrariamente ao seu ponto de partida, os mitos não são de ordem pessoal, mas sim geral, ou seja, uma propriedade comum de um grupo ou tribo que ajuda a construir a sua consciente identidade grupal”. (BURRKET, 2001, p, 86). De acordo com o nosso autor, 
O mito neste sentido nunca existe ‘puro’ em si, mas tal por alvo a realidade; o mito é simultaneamente uma metáfora ao nível da narração. A seriedade e dignidade do mito procedem desta ‘aplicação’: um complexo de narrativas tradicionais proporciona o meio primário de concatenar experiência e projeto da realidade e de o exprimir em palavras, de o comunicar e dominar, de ligar o apresente ao passado e simultaneamente de canalizar as expectativas do futuro”. (BURRKET, 1991, p. 17).

Nesse novo contexto do estudo dos mitos, Pinheiro (2001, p. 18), afirma que, para Burkert, mito não tem nada a ver com mística. A palavra grega mythos significa fala, narração, concepção. No tempo do Iluminismo grego[4], contudo, transformou-se no termo próprio para designar à distância as velhas narrativas, que não eram verdadeiramente para serem tomadas a sério. Apesar disso, o mito revela- se numa cultura superior, adulta e madura [...]. Em sua obra Mito e mitologia, Burkert define o mito objetivamente como sendo uma narrativa tradicional aplicada ou um saber por histórias. (BURKERT, 1991, p. 17). Porém, ainda na mesma obra, Burkert, fala-nos de certa ambiguidade ligada à noção de mito, na medida em que este é entendido como “algo ilógico, inverossímil ou impossível, talvez imoral, e, de qualquer modo falso, mas ao mesmo tempo compulsivo, fascinante, profundo e digno, quando não mesmo sagrado”. (Ibidem, p.15). Para desmistificar o conceito, Pereira (2017), cita Burkert (1979), que afirmara o seguinte:
Mito é um conto tradicional aplicado, e a sua relevância e seriedade radicam largamente na sua aplicação. Os fenómenos de importância coletiva que são verbalizados pela aplicação de contos tradicionais são os da vida social, do ritual religioso, do medo dos fenómenos da natureza, da experiência da doença, e problemas gerais da sociedade humana. (PEREIRA, 2017, p. 324).

Esta definição, segundo a mesma autora, tem o seu complemento na atenção prestada à dimensão histórica. Ao contrário dos estruturalistas, Burkert reconhece e sublinha a importância dos níveis históricos do mito, correspondentes às suas diversas aplicações. (ibidem). Assim, para o nosso autor, o mito como “narrativa aplicada”, como referimos, possui várias funções, de entre as quais podemos citar: explicar rituais, esboçar reivindicações familiares, orientar o cominho no mundo dos vivos e dos mortos, assim como, estabelecer o sentimento de unidade em instituições recém-fundadas etc.

Como se pode constatar, a contribuição de Burkert é de extrema importância fazendo jus a tudo o que foi citado anteriormente, tendo em conta que, como sistema de comunicação, o mito é fundamental, pois, ele é o link que permite estabelecer uma relação temporal e sequencial entre as elaborações anteriores (passado), com as atuais (presente) para que se possa elaborar novas perspectivas rumo ao futuro.  


Considerações finais 

Após tudo o que foi exposto ao longo da pesquisa, acredito que, todas os pontos de vista e teorias relativamente ao mito, foram e ainda são importantes, pois, cada um dos pensadores citados, analisou o mito a partir de uma perspectiva cultural e com uma visão pessoal dentro do espectro das suas respetivas disciplinas. Mas, a certeza que fiquei, é que o mito é uma caraterística universal da condição humana, porque estabelece parâmetros de como viver num mundo que faz sentido.

O mito não pertence à ordem subjetiva ou pessoal, mas sim objetiva e geral, ou seja, é um construto e uma propriedade comum de um povo historicamente e geograficamente localizado que ajuda a construir e a reforçar a identidade grupal, pois, apontando os valores mais altos e as crenças mais sagradas de um povo, englobando todos os aspetos que definem uma visão de mundo. 

Não há dúvidas que, mesmo com todo o avanço científico e tecnológico os mitos ainda permeiam, constroem e povoam nosso imaginário. Por mais distantes que estejam os mitos originários, ainda continuamos imersos num universo cheio de contos fantásticos com personagens e narrativas que nos ajudam a construir um sentido para as coisas ainda inexplicadas e inexplicáveis. 

Acredito que a influência do senso comum foi e é fundamental na construção das nossas crenças íntimas, portanto, ele é o principal formador de mitos. O senso comum tem para com o mito a mesma relação que o conceito tem para com a alegoria, ou seja, dá sustentação a uma verdade, que pode se manter por muito tempo, mas se cristaliza, caduca e perde a validade. Mas, por outro lado, o mito não é uma história, e nem tem essa pretensão, mas também não é mentira, como o senso comum costuma entender, pois, os mitos são a metáfora da vida e do homem. 

Por isso, o mito comporta uma função social muito importante, pois contribui para conter a ansiedade coletiva na busca para uma explicação quando a complexidade dos fenômenos ultrapassam os limites da nossa racionalidade. O mito possui um caráter pragmático, mas seu sucesso não é mensurado valorativamente, mas sim pela eficácia real no mundo social onde vivemos e nos relacionamos. Portanto, nesse aspecto, a mitologia e os mitos têm uma função psicológica organizadora, estruturada e funcional da sociedade como um todo, uma vez que se trata de algo construído, sem comprovação prática.  
       
Relativamente às relações entre mito, ciência a teologia, observa-se que, no primeiro caso, as discrepâncias fundamentais surgem a parir de propósitos diferentes e de métodos também diferentes. Não obstante as gritantes diferenças, eles se dedicam o mesmo fim, o seja, a tarefa explicativa. O mito avançou ao lado do trabalho científico, e apesar de ser considerado um conhecimento inferior, muitas vezes “fabuloso”, seu papel normativo ainda é importante. Relativamente ao segundo ponto, acredito que, é fundamental abrirmos para a possibilidade de que todo o pensamento mítico contém um pensamento teológico e vice versa. Pois, vários mitos revelam por vezes profundas percepções teológicas, e, várias passagens em documentos considerados sagrados para os religiosos são basicamente narrativas míticas, mas com um sentido real.  

Do ponto de vista da Ciência da Religião, acredito que seja fundamental o estudo e a compreensão do mito, pois, como categoria universal e atemporal, o mito faz parte do mundo real e concreto, objeto de estudo por excelência do cientista da religião. Mas, acredito também que, apesar dos estudos empíricos, existe espaço também para reflexões mais teóricas de cunho filosófico e teológico, pois, como se sabe, o mito permeia todas as dimensões da condição humana. Por isso, seu estudo deve ser amplo e diverso, pois, quanto mais olhares sobre o fenômeno, mais elementos termos para examiná-lo. Como elemento primordial da cultura humana cuja função de situar o homem no cosmos de modo a organizá-lo e atribuir-lhe sentido, deve ser matéria de estudo para todos que se dediquem ao estudo do homem em suas múltiplas dimensões. 




Referências
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REÑONES Albor Vives. O imaginário grupal: mitos, violência e saber no teatro de criação. Editora Agora, 2004. 
SCHOCK, Marlon. Aportes epistemológicos para o ensino religioso na escola um estudo analítico propositivo. Clube de Autores, 2008.
SIMÕES, Jorge. Cultura religiosa: o homem e o fenômeno religioso. – 1ª edição: Edições Loyola, 1998.
TURNER, Graeme. Cinema como prática Social. Summus Editorial, 1997.
USARSKI, Frank. Constituintes da Ciência da religião: cinco ensaios em prol de uma disciplina autônoma. – São Paulo: Paulinas, 2006. – (Coleção repensando a religião).




[1] Doutorando em Ciência da Religião - PUC-SÃO PAULO – SP, (1º semestre), - E-mail: arlindonascimentorocha@gmail.com.
[2] Lendo a Sinopse da obra citada ficamos cientes de que, até Totem e tabu Freud, se limitara a obras dedicadas à psicanálise. Porém, a indagação quanto às origens e ao modo de transmissão de uma cultura conduziu sua atenção para a antropologia e para a etnopsicologia; ele nos primeiros homens mecanismos semelhantes aos operantes no homem moderno. Detectou dois fenômenos recorrentes nas tribos primitivas: a representação do pai primordial na forma do totem e o tabu do incesto. Por meio de uma “dedução histórica”, ele propõe a hipótese do “pai tirano”, cujo assassinato pelos filhos estaria na base do sentimento de culpa, da exogamia e da religião. Considerada pelo próprio autor uma de suas obras mais importantes, Totem e tabu sinaliza a aproximação da psicanálise às humanidades. Esta edição traz o texto traduzido do alemão, possibilitando ao leitor brasileiro o contato direto com um dos trabalhos freudianos mais elegantes e aprazíveis.
[3] De acordo com Cassirer (2003, p. 22), no “The Golden bough (o ramo dourado), Sir James Frazer tornou-se um rico manancial para toda a espécie de pesquisas antropológicas. Nos seus quinze volumes contém-se material recolhido em todas as partes do mundo e das mais heterogêneas fontes”.  
[4] O renascimento cultural europeu, alicerçado no iluminismo grego, colocou em evidencia a antiguidade clássica, cujo cerne da reflexão filosófica é a tese da autonomia da razão como procedimento para o conhecimento avançar rumo ao desconhecido. 

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