Arlindo Nascimento Rocha
"Grandes Temas de Ciência da Religião"
arlindonascimentorocha@gmail.com
Reflexões
sobre o sagrado:dos primórdios à atualidade
Acredita-se que, desde os
primórdios da humanidade os homens sempre tiveram uma concepção integrada do
real, pois, nesse primeiro momento da evolução não havia ainda a noção
fragmentada da realidade, caraterística vista atualmente como necessária e
inevitável. Essa noção fragmentada da realidade tornou-se um imperativo através
da qual passou-se a reconhecer a existência de realidades paralelas,
irredutíveis e incomensuráveis entre si.
Entretanto, ao recuarmos no tempo, é
possível imaginar que, nessa altura a concepção que norteava as escolhas e a
vida do homem, era uma concepção integrada do universo como um todo organizado
em que tudo girava em torno do sagrado, pois, vários estudos apontam que o
estado normal era o religioso (sagrado), ainda que em sua fase primitiva,
enquanto que no lado oposto, ou seja, o anormal seria o profano. Assim, o
profano passou a existir em função da não aceitação do sagrado, 'fenômeno' que
atualmente é conhecido como dessacralização que, Guimarães narra em sua obra O
sagrado e a história,
segundo a qual Eliade considera que, o conceito de dessacralização atingiu a
interioridade da própria consciência, de sorte que, a seu nível, o sagrado foi
abolido, ou seja, esquecido (GUIMARÃES, 2000).
Porém, atualmente alguns
estudiosos defendam que, paralelamente ao recuo das religiões oficiais, surge o
retorno do sagrado. A título de exemplo, podemos considerar o artigo citado por
Danièle Hervieu-Léger, O retorno do
sagrado, de Daniel Bell, que concluiu que, a probabilidade de um retorno da
religião é identificada como um suposto retorno do sagrado (BELL, 1977).
Entretanto, Bell foi imediatamente contrariado por Brian Wilson, enfatizando as
fraquezas dos argumentos por ele apresentado. Assim, a tensão entre o sagrado e
o profano sempre estiveram na ordem do dia, pois, ao contrário do que pensam
muitos intelectuais, ela é mais antiga do que se pensa.
Apesar dos limites bem
estabelecidos na Idade Média, atualmente não é possível identificar esses
mesmos limites no que tange ao alcance epistemológico de cada um, pois, na obra
do sociólogo francês, Émile Durkheim, As
formas elementares da vida religiosa, cujo esforço foi o de apoiar
empiricamente a tese sobre a origem social da religião, afirma que não existe
nada que seja essencialmente sagrado ou profano, uma vez que a diferença entre
um e outro está relacionado com a finalidade social (DURKHEIM, 1989).
Assim, respaldado pelo intenso debate e pela
tensão contemporânea em torno da problemática sobre a continuidade ou não entre
o ‘mundo sacralizado e as religiões oficiais’, versus o ‘mundo dessacralizado e a proliferação de novas religiões’,
e consequentemente de novas formas de entender e interpretar o sagrado, foi
trabalhado na disciplina: Grandes temas
de ciência da Religião, um leque variado te autores e textos que nos
permitiu um voo ainda que panorâmico, sobre diversas concepções do sagrado ao
longo da história. O objetivo inicial era o de apresentar a trajetória do
conceito enfatizando a etimologia e a história etimológica do mesmo, o que
necessariamente conduziu ao estudo das posições consideradas clássicas,
nomeadamente a do sociólogo Émile Durkheim (1858-1917), do cientista da
religião Mircea Eliade (1907-19860), e do teólogo protestante Rudolf Otto
(1869-1937).
Resumidamente constatou-se algumas categorias paradoxais como:
sagrado-profano; puro-impuro; interdito-permitido; caos-ordem; bom-nefasto [...]
Para o primeiro, nas sociedades primitivas a realidade estava imersa no sagrado
não havendo espaço para o profano, fato que o levou a desenvolver em sua obra As formas elementares da vida religiosa a
oposição entre o sagrado e o profano; o
segundo, identificou o sagrado como hierofania,
ou seja, algo sagrado que se manifesta ao homem tornando-o consciente do
sagrado uma vez que, é uma experiência que opõe ao profano; enquanto que, o
terceiro aborda o conceito de sagrado como a manifestação do numen, ou seja, poder divino, distinto de qualquer
tipo de experiência.
Seguidamente, foi
abordado as críticas mais recentes, relativamente a abordagem fenomenológica,
pois, em nosso entender, tanto Otto, assim como Eliade estavam imersos na teia fenomenológica
da religião; o primeiro procurando a compreensão do sagrado através da sua
manifestação na consciência humana e o segundo buscando a manifestação do mesmo
na dimensão ontológica e social, fato corroborado por, Lima (2016) ao considerar
que Otto, em sua obra O sagrado,
assume tais pressupostos e Eliade em, O
sagrado e o profano, estabelece uma relação binária entre sagrado e
profano. Entretanto, entre eles, o holandês Gerard van der Leeuw, foi o
primeiro que se destacou por sua abordagem fenomenológica, tendo escrito em 1933
a obra intitulada A fenomenologia da
religião.
Esses três protagonistas, segundo Botelho (2010, p. 35) utilizavam o
método descritivo visando identificar as semelhanças e diferenças nas
religiões, percebendo no sagrado um componente essencial da religião. Porém,
segundo Hock (2010, p. 14), “no século XX, a Fenomenologia da Religião em sua
forma tradicional se tornou alvo de fortes críticas”, sendo a mais evidente
delas segundo Usarski (2004), a piada da doença da numinose, uma crítica dirigida aos expoentes da fenomenologia
clássica, ou seja, Söderblom, Wach, Mensching, mas, especialmente a Otto,
criador do neologismo numinoso.
Dando continuidade foi abordada
em linhas gerais a grande dificuldade de conceituação do sagrado, pois, sua
polissemia, por vezes dificulta seu uso correto. Essa polissemia foi apresentada
através da relação entre o sagrado como 'adjetivo' usado por alguns autores e o
sagrado usado com 'substantivo' por outros. Em seguida e, talvez uma das
críticas mais importantes diz respeito a tentativa de impor ou generalizar o sagrado
como conceito universal, válido em todas as épocas, culturas e religiões. Essa
possibilidade presente especificamente na cultura ocidental possui uma forte
componente etnocêntrica, pois, a tendência geral é considerar o cristianismo
como modelo e ápice das religiões monoteístas e consequentemente, os elementos
do ‘sagrado cristão’ estariam na base da concepção do ‘sagrado universal’.
Mas,
depreende-se dessa tentativa um empreendimento fracassado, pois, a esse modelo
etnocêntrico do método teológico europeu cristão foi e é alvo de fortes
críticas, pois, o sagrado não se deixa apreender pelo conceito. Mesmo que
consideremos que, a semelhança da religião, o sagrado está presente em todas as
épocas, culturas e sociedades, isso, não justifica que, em todas haja a mesma
interpretação, os mesmos métodos e meios de sacralização/dessacralização,
as mesmas formas de reverência/repulsa.
Então, observando que, nem todas as
épocas históricas, sociedades e religiões o sagrado é visto sob o mesmo olhar,
analisou-se também textos importantes de autores que analisam, sobretudo, a
relação/tensão entre o 'sagrado religioso' pertencente às religiões ditas
tradicionais e o 'sagrado secular', resultado das transformações religiosas e
sociais, que conduziram necessariamente a emergência de novas religiões, novos cultos
e consequentemente, novas visões sobre o sagrado. Para finalizar, analisou-se o
conceito sob a perspectiva das diversas subdisciplinas da Ciência da Religião
com o enfoque final para a sua recepção no Brasil, onde o reflexo das teorias
fenomenológicas clássicas ainda está muito enraizado nas universidades.
Em jeito de conclusão, corroboramos a tese de Léger que afirma que a proliferação de estudos sobre o sagrado na atualidade só contribuiu para complicar ainda mais um assunto bastante controverso. Entretanto, a reflexão em torno das tensões sobre a universalidade/particularidade, objetividade/subjetividade, manutenção/transformação, monopólio/perda de monopólio, veneração/repúdio, criação/destruição, em torno de sagrado, considera-se que, a trajetória apresentada e discutida em aulas expositivas e seminários foi muito enriquecedora, pois, acredita-se que, todos saíram com novos elementos que darão efetivamente novos suportes epistemológicos em discussões futuras sobre o tema.
Em jeito de conclusão, corroboramos a tese de Léger que afirma que a proliferação de estudos sobre o sagrado na atualidade só contribuiu para complicar ainda mais um assunto bastante controverso. Entretanto, a reflexão em torno das tensões sobre a universalidade/particularidade, objetividade/subjetividade, manutenção/transformação, monopólio/perda de monopólio, veneração/repúdio, criação/destruição, em torno de sagrado, considera-se que, a trajetória apresentada e discutida em aulas expositivas e seminários foi muito enriquecedora, pois, acredita-se que, todos saíram com novos elementos que darão efetivamente novos suportes epistemológicos em discussões futuras sobre o tema.
Referências
bibliográficas
BELL, Daniel. O retorno do Sagrado? O argumento do futuro da religião. In. HERVIEU-LÉGER, Danièle.
Idas y vindas de lo sagrado. Capítulo
III da obra La Religion por mémoir. Editora
Cerf, 1993.
BOTELHO, Octavio Da Cunha. Afinal,
o que é religião? - São Paulo: Editora
Clube de Autores, 2010.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. – São Paulo: Paulinas,
1989.
GUIMARÃES. André Eduardo. O
sagrado e a história: fenômeno religioso e
valorização da história à luz do anti-historicismo de Mircea Eliade. - Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
(Coleção: Teologia 21).
HOCK, Klaus. Introdução à Ciência da Religião. Trad. Monika Ottermann. - São
Paulo: Edições Loyola, 2010.
LIMA, Ronald. Fenomenologia da religião.
– São Paulo: Clube de Autores, 2016.
USARSKI, Frank. Os enganos sobre o sagrado – uma síntese da crítica ao ramo
"clássico" da fenomenologia da religião e seus conceitos-chave.
Revista de Estudos da Religião Nº 4 / 2004 / pp. 73-95.
Obrigado!
ResponderEliminar