A ideia da tolerância religiosa está enraizada no
pensamento liberal do século XVII. Ela obedecia a uma inspiração racionalista
associada a um fator que não pode ser subestimado na promoção da paz entre os
diferentes credos: as necessidades econômicas do capitalismo mercantil. As
razões de comércio encontraram nas diferenças religiosas um obstáculo ao seu
pleno desenvolvimento:
[...] A Inglaterra gastou a primeira metade do século XVII
em enérgica oposição à política antiespanhola do governo (inglês). Na
restauração de 1660 foi grandemente assegurado que o comércio não conhecia
barreiras religiosas; o importante corolário que se seguiu a isto foi que a
abolição e barreiras religiosas promoveriam o comércio. Em 1668 Sir Anthony
Ashley Cooper apresentou um memorial a Charles II no qual usa o comércio para
reforçar seu apelo de maior liberdade para com os dissidentes religiosos.
Apesar da ideia ter nascido no século XVII, atualmente, em
pleno século XXI, época em que se caminha para a consolidação de todos os
direitos civis, políticos, sociais e humanos, ainda são visíveis traços de
intolerância – principalmente a "intolerância religiosa" na qual se
tem expressado de modo tão acentuado que levou a ONU a eleger o ano de 1995
como o ano da prática da tolerância. No entanto continuamos imersos em ondas
crescentes de violência. Desta forma, a tolerância como proclama a Declaração
da ONU, não é somente um princípio ou um valor relevante, mas igualmente uma
condição necessária para a paz e para o desenvolvimento econômico e social de
todos os povos. É, ao mesmo tempo, um dever de ordem ética e uma necessidade
política e jurídica (Artigo 1º). Com tolerância o futuro pode ser aguardado com
esperança.
Porém, o termo tolerância carece de purificação semântica,
por causa do uso da linguagem popular. Tolerância não significa, o simples
aceitar o diferente ou suportar passivamente o outro. Antes implica reconhecer
o verdadeiro direito de o outro expressar-se livremente. No dicionário de
filosofia de Nicola Abbagnano, e no dicionário Aurélio de Língua Portuguesa,
encontramos as seguintes definições para tolerância:
Norma ou
principio de liberdade religiosa [...] na linguagem comum e às vezes filosófica
a tolerância é entendida em sentido mais amplo, abrangendo qualquer forma de
liberdade, seja ela moral, política ou social. Assim entendida, identifica-se
com o pluralismo de valores, de grupos e de interesses na sociedade
contemporânea [...]
Tendência
para admitir modos de pensar, de agir e de sentir que diferem dos de um
individuo ou de grupos determinados, políticos ou religiosos; diferença máxima
admitida entre um valor especificado e o obtido; margem especificada como
admissível para o erro em uma medida ou para discrepância em relação a um
padrão.
Quando se fala em tolerância religiosa, é preciso lembrar
que, ela faz parte dos direitos fundamentais de qualquer cidadão, presente na
Constituição Brasileira, no Art. 5º, inciso VI:
É
inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos
locais de culto e suas liturgias, e a aceitação dos diferentes tipos de
religião existente no mundo e na sociedade.
Para que tal liberdade possa ser exercida não deve haver
obstáculos, dado que a verdade não se impõe de outro modo se não pela força
dessa mesma verdade. A dignidade da pessoa humana exige que todos gozem de
imunidade de toda a coação e atos de intolerância religiosa. A sociedade, o
Estado, as instituições religiosas, não devem forçar as pessoas a agir contra a
sua consciência e a sua filiação religiosa, nem impedi-las do proceder de
acordo com ela. A liberdade religiosa, porém, não é uma licença moral para
aderir ao erro, nem um implícito direito ao erro.
Para podermos distinguir entre o aceitável e o não
aceitável em termos de religião, precisamos conhecer sua origem, seus dogmas e
suas práticas. Quem só conhece e estuda uma religião, não pode emitir juízos de
valor relativamente às demais. Antes de julgar é preciso conhecer para aprender
a respeitar o diferente. A intolerância religiosa, baseia-se na crença de
que uma religião é superior às demais ou a única detentora da verdade absoluta.
Por isso, mais do que a liberdade religiosa, precisamos falar da tolerância
religiosa, não para legitimar todas as religiões e práticas, mas para aceitar
que cada pessoa as julgue por si próprio.
Nesse aspecto a tolerância religiosa envolve os seguintes
aspetos: a) reconhecer o direito de julgamento privado em assuntos religiosos;
b) reconhecer o direito e a liberdade quanto às convicções, opiniões, formas de
adoração, práticas e ações relacionadas às religiões; c) aceitar que seguidores
de várias religiões considerem suas convicções como verdadeiros; permitir as
pessoas mudar de religião livremente; d) recusar a descriminação em emprego ou
acomodação a pessoas de outras religiões, até mesmo as minoritárias; e)
acomodar as necessidades religiosas de outras pessoas, por exemplo, respeitando
o calendário religioso e as suas dietas específicas [...]
Um dos caminhos para a consolidação da tolerância religiosa
no mundo inteiro é reconhecer que as sociedades desde sempre, cultivaram
diversas religiões, acreditaram em vários deuses e deusas, apelaram a entidades
e seres que transcendem nosso imaginário e preenchem nossa necessidade de
conciliar nossa imanência com a nossa tendência ou sede de transcendência, em
territórios e épocas diferentes. Um dos caminhos, não que seja o melhor, é o
estudo da história das religiões e os principais pensadores que sistematizaram
as várias teorias em obras reconhecidas ao longo dos séculos.
A tese dominante no século XVIII é que a humanidade
primeiro teria sido monoteísta, e depois, devido a uma decadência original,
teria dedicado ao culto dos animais, às forças naturais, aos ídolos e às
múltiplas divindades. No século XIX Benjamim Constant dividiu a história da
humanidade em três idades: a) Fetichismo: culto de objetos que se supõe
representarem entidades espirituais e possuírem poderes de magia; b) Politeísmo:
sistema ou crença religiosa que admite mais de um Deus; c) Teísmo: conceito
filosófico-religioso desenvolvido para se compreender o Criador. Esta filosofia
defende que este Ser é a única entidade responsável pela criação do Universo; é
onipotente, capaz de realizar tudo sem a ajuda de ninguém; onisciente, ou seja,
Aquele que tudo conhece; detém infinita liberdade e suprema generosidade.
Na mesma linha, Auguste Comte distingue três estados da
história humana: a) o estado teológico; b) o estado metafísico; c) e, o estado
cientifico. Para Edward Tylor (século. XIX) a primeira forma de religião era o
animismo e a teoria da evolução parte daí para o fetichismo, o naturalismo, o
politeísmo e por fim o monoteísmo. James Frazer (século. XX) resume as ideias
de Tylor em três estados: o animalismo, o politeísmo e o monoteísmo. Em um
único empreendimento sociológico de teorização da história das etapas da
história religiosa, Robert Bellah distingue cinco tipos de religião: a) a
“religião primitiva”; b) a “religião arcaica”; c) a “religião histórica”; d) a
“religião primoderna; e) a “religião moderna”.
Atualmente a convivência com a diversidade religiosa ou como o pluralismo
religioso crescente é cada vez mais acentuado, tendo em conta que as sociedades
ficaram mais dinâmicas e dialéticas. Nesse sentido, o pluralismo religioso pode
ser considerado uma consequência da democratização das sociedades, que
considera todos os sujeitos religiosos como legítimos. Sociedades democráticas
reconhecem o direito à diferença dos indivíduos e grupos sociais. Nestas
sociedades os grupos religiosos são chamados ao reconhecimento e à convivência
entre as diferentes denominações. Para estes grupos, o diálogo
inter-religioso surge como uma necessidade e um desafio.
Por outro lado há que reconhecer que a despeito dessa dinâmica e desse
crescimento e desse pluralismo religioso, outro fator de distanciamento, de
obscurantismo e de intolerância que cresceu e continua crescendo a uma
velocidade incontrolável. Esse obstáculo à convivência inter-religiosa, à
tolerância, ao diálogo inter-religioso é conhecido como
o fundamentalismo religioso, que pode ser pode ser definido como:
Um fenômeno
caracterizado pela cultura e que pode nominalmente ser influenciada pela
religião dos partidários. O termo pode também se referir especificamente à
convicção de que algum texto ou preceito religioso considerado infalível, ainda
que contrários ao entendimento de estudiosos modernos. Grupos fundamentalistas
religiosos frequentemente rejeitam o termo por causa das suas conotações
negativas ou porque insinua semelhança entre eles e outros grupos cujos
procedimentos acham censuráveis.
O fundamentalismo religioso está presente em
todas as religiões, durante todas as épocas da história da humanidade. Os
fundamentalistas são os mais conservadores e literais seguidores de uma
religião. Mas, nada tem a ver com o monoteísmo (culto ou adoração de um único Deus).
O fundamentalismo é a transformação da religião em ideologia. Há pessoas que
afirmam ser fundamentalistas “sou fundamentalista porque respeito os
fundamentos”. Mas é preciso não vulgarizar o significado dos conceitos, uma vez
quem atualmente, o fundamentalista religioso não é aquele que se limita a
respeitar os fundamentos. Segundo Nicola Abbagnano, o fundamentalismo:
Historicamente
é um movimento que se desenvolveu no seio do protestantismo norte-americano;
mas em geral é um posicionamento religioso que se caracteriza pela referência
intransigente aos fundamentos da confissão professada, comporta uma
interpretação literária dos textos sagrados, a recusa global à inovação e a
ênfase no sentimento de pertencer a um grupo religioso a que se adere. O fundamentalismo
apareceu ligado às religiões abraâmicas (hebraísmo, cristianismo, e islamismo),
baseadas na revelação escrita (Bíblia, Evangelho, Alcorão) [...].
Os fundamentalistas religiosos consideram que a origem de
todos os males está no abandono da observância dos preceitos ditas “originais
ou autênticas”. Por isso, pregam a necessidade de voltar à observância rígida
dos preceitos, subordinada a uma leitura literal dos mandamentos e o
cumprimento inescrupuloso dos dogmas e das normas. Com isso, os
fundamentalistas pretendem estabelecer o que é “falso” e “verdadeiro”. Por
outro lado, o fundamentalismo religioso, recusa o espaço cultural autônomo,
recusa a validade da experiência humana, histórica, social, cívica, artística,
científica, tecnológica independente da religião. Consideram iluminados pela
luz divina e investidos em uma missão transcendente e, portanto, acham no
direito de recorrer a todos os meios, inclusive a violência, para impor a lei
que eles consideram de Deus sobre a terra. E, finalmente, é preciso esclarecer
que o fundamentalismo religioso não provém das camadas mais atrasadas da
sociedade nem de países subdesenvolvidos. São geralmente grupos urbanos, na
maior parte são pessoas altamente instruídas, dominam o uso de tecnologias e usam-nas
para a manipulação e intimidação das massas.
A pluralidade religiosa desperta na população o anseio por
garantias, normas de condutas inequívocas e limites claros, o que por seu lado
fomenta o fundamentalismo religioso e cultural. Este será um grande desafio
para o diálogo no futuro. Diálogo inter-religioso é a ideia de que as
diferentes religiões do mundo devem evitar a busca pela supremacia
mundial e, ao invés disso, devem dialogar e se respeitar mutuamente, procurando
evitar as guerras com motivação religiosa.
Em 2003, um Encontro Internacional reuniu 35 especialistas
em religião provindos da Ásia, Europa e Estados Unidos. Os
participantes estabeleceram os princípios para o diálogo inter-religioso. De
entre os oito princípios, destacamos três: a) a diálogo e o compromisso
inter-religioso devem ser a forma pela qual as religiões se relacionam entre
si; b) o diálogo deve envolver os problemas do mundo atual, incluindo
a guerra, a violência, a pobreza, a devastação ambiental, a
injustiça de gênero e a violação dos direitos humanos; c) as
religiões do mundo compartilham muitos valores essenciais, como
o amor, a compaixão, a igualdade, a honestidade e o ideal
de tratar os outros como queremos ser tratados.
Apesar desses princípios universais que pregam a tolerância
religiosa, no dia-a-dia, a melhor forma de exercitar a tolerância é abrir
espaço para a liberdade de crença e deixar cada um viver sua fé sem
impedimentos, sem pré-julgamentos, sem ostracismo, sem perseguição, mas,
respeitando sempre o diferente, afinal, tudo começa com o respeito, e, a
tolerância é o mote, pela qual devemos pautar nossas ações. Para isso
precisamos conhecer e refletir sobre os “dez mandamentos” do diálogo e da boa
convivência religiosa: a) trate os outros como você quer ser tratado, b)
respeite a crença religiosa dos outros; c) não brinque nem desrespeite as
práticas religiosas dos outros; d) cuidado com a forma como você se aproxima de
símbolos e rituais de outras religiões; e) não deixe diferenças religiosas afastarem
você da sua família e amigos; f) acompanhe, monitore o ensino religioso
ministrado no colégio onde seu filho estuda; g) evite enviar e repassar
correntes religiosas por e-mail e redes sociais; j) evite discutir religião com
pessoas “recém-convertidas” a uma nova religião; h) evite convencer outras
pessoas da plausibilidade ou da veracidade de sua própria crença o religião em
detrimento de outras crenças ou religiões.
Por último é preciso relembrar que a Lei 9.459, de 1997,
considera crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões.
Ninguém pode ser discriminado em razão de credo religioso. O crime de
discriminação religiosa é inafiançável (o acusado não pode pagar fiança para
responder em liberdade) e imprescritível (o acusado pode ser punido a qualquer
tempo).