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segunda-feira, 7 de novembro de 2016

CAMINHOS PARA A PROMOÇÃO DA TOLERÂNCIA RELIGIOSA



A ideia da tolerância religiosa está enraizada no pensamento liberal do século XVII. Ela obedecia a uma inspiração racionalista associada a um fator que não pode ser subestimado na promoção da paz entre os diferentes credos: as necessidades econômicas do capitalismo mercantil. As razões de comércio encontraram nas diferenças religiosas um obstáculo ao seu pleno desenvolvimento: 

[...] A Inglaterra gastou a primeira metade do século XVII em enérgica oposição à política antiespanhola do governo (inglês). Na restauração de 1660 foi grandemente assegurado que o comércio não conhecia barreiras religiosas; o importante corolário que se seguiu a isto foi que a abolição e barreiras religiosas promoveriam o comércio. Em 1668 Sir Anthony Ashley Cooper apresentou um memorial a Charles II no qual usa o comércio para reforçar seu apelo de maior liberdade para com os dissidentes religiosos.

Apesar da ideia ter nascido no século XVII, atualmente, em pleno século XXI, época em que se caminha para a consolidação de todos os direitos civis, políticos, sociais e humanos, ainda são visíveis traços de intolerância – principalmente a "intolerância religiosa" na qual se tem expressado de modo tão acentuado que levou a ONU a eleger o ano de 1995 como o ano da prática da tolerância. No entanto continuamos imersos em ondas crescentes de violência. Desta forma, a tolerância como proclama a Declaração da ONU, não é somente um princípio ou um valor relevante, mas igualmente uma condição necessária para a paz e para o desenvolvimento econômico e social de todos os povos. É, ao mesmo tempo, um dever de ordem ética e uma necessidade política e jurídica (Artigo 1º). Com tolerância o futuro pode ser aguardado com esperança.

Porém, o termo tolerância carece de purificação semântica, por causa do uso da linguagem popular. Tolerância não significa, o simples aceitar o diferente ou suportar passivamente o outro. Antes implica reconhecer o verdadeiro direito de o outro expressar-se livremente. No dicionário de filosofia de Nicola Abbagnano, e no dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, encontramos as seguintes definições para tolerância:

Norma ou principio de liberdade religiosa [...] na linguagem comum e às vezes filosófica a tolerância é entendida em sentido mais amplo, abrangendo qualquer forma de liberdade, seja ela moral, política ou social. Assim entendida, identifica-se com o pluralismo de valores, de grupos e de interesses na sociedade contemporânea [...]  

Tendência para admitir modos de pensar, de agir e de sentir que diferem dos de um individuo ou de grupos determinados, políticos ou religiosos; diferença máxima admitida entre um valor especificado e o obtido; margem especificada como admissível para o erro em uma medida ou para discrepância em relação a um padrão.   

Quando se fala em tolerância religiosa, é preciso lembrar que, ela faz parte dos direitos fundamentais de qualquer cidadão, presente na Constituição Brasileira, no Art. 5º, inciso VI:

É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias, e a aceitação dos diferentes tipos de religião existente no mundo e na sociedade.

Para que tal liberdade possa ser exercida não deve haver obstáculos, dado que a verdade não se impõe de outro modo se não pela força dessa mesma verdade. A dignidade da pessoa humana exige que todos gozem de imunidade de toda a coação e atos de intolerância religiosa. A sociedade, o Estado, as instituições religiosas, não devem forçar as pessoas a agir contra a sua consciência e a sua filiação religiosa, nem impedi-las do proceder de acordo com ela. A liberdade religiosa, porém, não é uma licença moral para aderir ao erro, nem um implícito direito ao erro.

Para podermos distinguir entre o aceitável e o não aceitável em termos de religião, precisamos conhecer sua origem, seus dogmas e suas práticas. Quem só conhece e estuda uma religião, não pode emitir juízos de valor relativamente às demais. Antes de julgar é preciso conhecer para aprender a respeitar o diferente.  A intolerância religiosa, baseia-se na crença de que uma religião é superior às demais ou a única detentora da verdade absoluta. Por isso, mais do que a liberdade religiosa, precisamos falar da tolerância religiosa, não para legitimar todas as religiões e práticas, mas para aceitar que cada pessoa as julgue por si próprio.

Nesse aspecto a tolerância religiosa envolve os seguintes aspetos: a) reconhecer o direito de julgamento privado em assuntos religiosos; b) reconhecer o direito e a liberdade quanto às convicções, opiniões, formas de adoração, práticas e ações relacionadas às religiões; c) aceitar que seguidores de várias religiões considerem suas convicções como verdadeiros; permitir as pessoas mudar de religião livremente; d) recusar a descriminação em emprego ou acomodação a pessoas de outras religiões, até mesmo as minoritárias; e) acomodar as necessidades religiosas de outras pessoas, por exemplo, respeitando o calendário religioso e as suas dietas específicas [...]

Um dos caminhos para a consolidação da tolerância religiosa no mundo inteiro é reconhecer que as sociedades desde sempre, cultivaram diversas religiões, acreditaram em vários deuses e deusas, apelaram a entidades e seres que transcendem nosso imaginário e preenchem nossa necessidade de conciliar nossa imanência com a nossa tendência ou sede de transcendência, em territórios e épocas diferentes. Um dos caminhos, não que seja o melhor, é o estudo da história das religiões e os principais pensadores que sistematizaram as várias teorias em obras reconhecidas ao longo dos séculos.

A tese dominante no século XVIII é que a humanidade primeiro teria sido monoteísta, e depois, devido a uma decadência original, teria dedicado ao culto dos animais, às forças naturais, aos ídolos e às múltiplas divindades. No século XIX Benjamim Constant dividiu a história da humanidade em três idades: a) Fetichismo: culto de objetos que se supõe representarem entidades espirituais e possuírem poderes de magia; b) Politeísmo: sistema ou crença religiosa que admite mais de um Deus; c) Teísmo: conceito filosófico-religioso desenvolvido para se compreender o Criador. Esta filosofia defende que este Ser é a única entidade responsável pela criação do Universo; é onipotente, capaz de realizar tudo sem a ajuda de ninguém; onisciente, ou seja, Aquele que tudo conhece; detém infinita liberdade e suprema generosidade.

Na mesma linha, Auguste Comte distingue três estados da história humana: a) o estado teológico; b) o estado metafísico; c) e, o estado cientifico. Para Edward Tylor (século. XIX) a primeira forma de religião era o animismo e a teoria da evolução parte daí para o fetichismo, o naturalismo, o politeísmo e por fim o monoteísmo. James Frazer (século. XX) resume as ideias de Tylor em três estados: o animalismo, o politeísmo e o monoteísmo. Em um único empreendimento sociológico de teorização da história das etapas da história religiosa, Robert Bellah distingue cinco tipos de religião: a) a “religião primitiva”; b) a “religião arcaica”; c) a “religião histórica”; d) a “religião primoderna; e) a “religião moderna”. 

Atualmente a convivência com a diversidade religiosa ou como o pluralismo religioso crescente é cada vez mais acentuado, tendo em conta que as sociedades ficaram mais dinâmicas e dialéticas. Nesse sentido, o pluralismo religioso pode ser considerado uma consequência da democratização das sociedades, que considera todos os sujeitos religiosos como legítimos. Sociedades democráticas reconhecem o direito à diferença dos indivíduos e grupos sociais. Nestas sociedades os grupos religiosos são chamados ao reconhecimento e à convivência entre as diferentes denominações. Para estes grupos, o diálogo inter-religioso surge como uma necessidade e um desafio.

Por outro lado há que reconhecer que a despeito dessa dinâmica e desse crescimento e desse pluralismo religioso, outro fator de distanciamento, de obscurantismo e de intolerância que cresceu e continua crescendo a uma velocidade incontrolável. Esse obstáculo à convivência inter-religiosa, à tolerância, ao diálogo inter-religioso é conhecido como o fundamentalismo religioso, que pode ser pode ser definido como:

Um fenômeno caracterizado pela cultura e que pode nominalmente ser influenciada pela religião dos partidários. O termo pode também se referir especificamente à convicção de que algum texto ou preceito religioso considerado infalível, ainda que contrários ao entendimento de estudiosos modernos. Grupos fundamentalistas religiosos frequentemente rejeitam o termo por causa das suas conotações negativas ou porque insinua semelhança entre eles e outros grupos cujos procedimentos acham censuráveis.

O fundamentalismo religioso está presente em todas as religiões, durante todas as épocas da história da humanidade. Os fundamentalistas são os mais conservadores e literais seguidores de uma religião. Mas, nada tem a ver com o monoteísmo (culto ou adoração de um único Deus). O fundamentalismo é a transformação da religião em ideologia. Há pessoas que afirmam ser fundamentalistas “sou fundamentalista porque respeito os fundamentos”. Mas é preciso não vulgarizar o significado dos conceitos, uma vez quem atualmente, o fundamentalista religioso não é aquele que se limita a respeitar os fundamentos. Segundo Nicola Abbagnano, o fundamentalismo:

Historicamente é um movimento que se desenvolveu no seio do protestantismo norte-americano; mas em geral é um posicionamento religioso que se caracteriza pela referência intransigente aos fundamentos da confissão professada, comporta uma interpretação literária dos textos sagrados, a recusa global à inovação e a ênfase no sentimento de pertencer a um grupo religioso a que se adere. O fundamentalismo apareceu ligado às religiões abraâmicas (hebraísmo, cristianismo, e islamismo), baseadas na revelação escrita (Bíblia, Evangelho, Alcorão) [...].   

Os fundamentalistas religiosos consideram que a origem de todos os males está no abandono da observância dos preceitos ditas “originais ou autênticas”. Por isso, pregam a necessidade de voltar à observância rígida dos preceitos, subordinada a uma leitura literal dos mandamentos e o cumprimento inescrupuloso dos dogmas e das normas. Com isso, os fundamentalistas pretendem estabelecer o que é “falso” e “verdadeiro”. Por outro lado, o fundamentalismo religioso, recusa o espaço cultural autônomo, recusa a validade da experiência humana, histórica, social, cívica, artística, científica, tecnológica independente da religião. Consideram iluminados pela luz divina e investidos em uma missão transcendente e, portanto, acham no direito de recorrer a todos os meios, inclusive a violência, para impor a lei que eles consideram de Deus sobre a terra. E, finalmente, é preciso esclarecer que o fundamentalismo religioso não provém das camadas mais atrasadas da sociedade nem de países subdesenvolvidos. São geralmente grupos urbanos, na maior parte são pessoas altamente instruídas, dominam o uso de tecnologias e usam-nas para a manipulação e intimidação das massas.       
  
A pluralidade religiosa desperta na população o anseio por garantias, normas de condutas inequívocas e limites claros, o que por seu lado fomenta o fundamentalismo religioso e cultural. Este será um grande desafio para o diálogo no futuro. Diálogo inter-religioso é a ideia de que as diferentes religiões do mundo devem evitar a busca pela supremacia mundial e, ao invés disso, devem dialogar e se respeitar mutuamente, procurando evitar as guerras com motivação religiosa.

Em 2003, um Encontro Internacional reuniu 35 especialistas em religião provindos da Ásia, Europa e Estados Unidos. Os participantes estabeleceram os princípios para o diálogo inter-religioso. De entre os oito princípios, destacamos três: a) a diálogo e o compromisso inter-religioso devem ser a forma pela qual as religiões se relacionam entre si; b) o diálogo deve envolver os problemas do mundo atual, incluindo a guerra, a violência, a pobreza, a devastação ambiental, a injustiça de gênero e a violação dos direitos humanos; c) as religiões do mundo compartilham muitos valores essenciais, como o amor, a compaixão, a igualdade, a honestidade e o ideal de tratar os outros como queremos ser tratados.

Apesar desses princípios universais que pregam a tolerância religiosa, no dia-a-dia, a melhor forma de exercitar a tolerância é abrir espaço para a liberdade de crença e deixar cada um viver sua fé sem impedimentos, sem pré-julgamentos, sem ostracismo, sem perseguição, mas, respeitando sempre o diferente, afinal, tudo começa com o respeito, e, a tolerância é o mote, pela qual devemos pautar nossas ações. Para isso precisamos conhecer e refletir sobre os “dez mandamentos” do diálogo e da boa convivência religiosa: a) trate os outros como você quer ser tratado, b) respeite a crença religiosa dos outros; c) não brinque nem desrespeite as práticas religiosas dos outros; d) cuidado com a forma como você se aproxima de símbolos e rituais de outras religiões; e) não deixe diferenças religiosas afastarem você da sua família e amigos; f) acompanhe, monitore o ensino religioso ministrado no colégio onde seu filho estuda; g) evite enviar e repassar correntes religiosas por e-mail e redes sociais; j) evite discutir religião com pessoas “recém-convertidas” a uma nova religião; h) evite convencer outras pessoas da plausibilidade ou da veracidade de sua própria crença o religião em detrimento de outras crenças ou religiões.

Por último é preciso relembrar que a Lei 9.459, de 1997, considera crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões. Ninguém pode ser discriminado em razão de credo religioso. O crime de discriminação religiosa é inafiançável (o acusado não pode pagar fiança para responder em liberdade) e imprescritível (o acusado pode ser punido a qualquer tempo).  

Referencias
ABBANANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Martins Fontes, São Paulo, 2007.
As Três Religiões do Livro.  Anselmo. Borges, João G. Monteiro (coord.), Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012.
Compêndio da Doutrina social da Igreja. 1ª edição: Principia Editor (publicações universitárias e científicas Lda). São João do Estoril, Cascais, 2005.
LAMBERT Yves. O nascimento das Religiões: da pré-história às religiões universalistas. Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2011.
LIBANEO, J.B. Em busca da lucidez: o fiel da balança. Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2008.
VON, Cristina. Cultura de Paz. – São Paulo, Petrópolis, 2003.
KAMEN, Henry. The rise of toleration. New York/Toronto: McGraw-Hill Book, 1972.




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