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terça-feira, 14 de junho de 2016

As religiões são boas ou ruins?

Kwame Anthony Appiah: 
Religiões são boas ou ruins? (É uma pegadinha)


As pessoas estão sempre a falar de religião. O grande Christopher Hitchens, já falecido, escreveu um livro chamado "Deus Não É Grande", cujo subtítulo era "Como a religião envenena tudo". Mas no mês passado, na revista Time, o rabi David Wolpe que, vim a saber, é chamado o rabi da América, disse para contrabalançar essa caracterização negativa que não pode haver nenhuma forma de mudança social a não ser através da religião organizada.

Observações deste tipo, tanto negativas como positivas, são muito antigas. Tenho aqui no meu bolso uma delas do século I a.C, de Lucrécio, o autor de "Sobre a Natureza das Coisas", que disse: "Tantum religio potuit suadere malorum" — devia ter aprendido isto de cor, ou seja, "A tantos males pode a religião persuadir". Referia-se à decisão de Agamémnon de pôr a sua filha Ifigénia no altar de sacrifícios, a fim de preservar as perspetivas do seu exército. Portanto, tem havido longos debates sobre religião ao longo dos séculos, podemos mesmo dizer, ao longo de milênios. As pessoas falam muito sobre isso e dizem coisas boas e más e coisas indiferentes sobre ela.

Aquilo de que vos quero convencer hoje é uma afirmação muito simples: é que estes debates de certa forma, são estapafúrdios, porque não existe essa coisa de religião sobre a qual se façam essas afirmações. Não há uma coisa chamada religião e, portanto, não pode ser boa ou má. Nem sequer pode ser indiferente. Se pensarmos nas afirmações sobre a não existência das coisas, uma forma óbvia de tentar estabelecer a não existência duma determinada coisa será apresentar uma definição para essa coisa e depois ver se há alguma coisa que a satisfaça. Para começar, vou iniciar-me nessa via.

Se procurarem nos dicionários e pensarem nisso, uma definição muito natural de religião é a que envolve a crença em deuses ou em seres espirituais. Como disse, isto é em muitos dicionários, mas também a encontraremos na obra de Sir Edward Tylor, que foi o primeiro professor de antropologia em Oxford, um dos primeiros antropólogos modernos. No seu livro sobre a cultura primitiva, diz que o cerne da religião é aquilo a que chamou animismo, ou seja, a crença numa ação espiritual, a crença em espíritos. O primeiro problema para esta definição vem num recente romance de Paul Beatty chamado "Tuff". Um homem conversa com um rabi. O rabi diz que não acredita em Deus. O homem diz: "És um rabi, como é que não acreditas em Deus?" E a resposta é: "É o que há de grandioso em ser judeu. "Não é preciso acreditar num Deus 'per se', "basta ser judeu". Portanto, se este homem é um rabi, e um rabi judeu, e se é preciso acreditar em Deus para ser religioso, temos que tirar a conclusão muito pouco intuitiva de que, se é possível ser um rabi judeu sem acreditar em Deus, o judaísmo não é uma religião. Isto parece um pensamento muito pouco intuitivo.

Há outro argumento contra esta perspectiva. Um amigo meu, um amigo meu indiano, foi à casa do avô, quando ainda era muito jovem, em criança, e disse-lhe: "Quero falar de religião". O avô disse: "És muito novo. Volta quando fores adolescente". Ele voltou quando era adolescente e disse ao avô: "Agora talvez seja tarde demais "porque descobri que não acredito em deuses". E o avô, que era um homem sábio, disse: "Oh, então pertences ao ramo ateísta "da tradição hindu".

E, por fim, há este homem que todos sabem que não acredita em Deus. Chama-se Dalai Lama. Brinca muitas vezes por ser um dos principais ateus do mundo. Mas é verdade, porque a religião do Dalai Lama não envolve a crença em Deus.

Ora bem, podem pensar que isto apenas mostra que eu vos dei a definição errada e que devia aparecer com outra definição qualquer e testá-la contra estes casos. Procurar e descobrir qualquer coisa que capte o judaísmo ateísta, o hinduísmo ateísta, e o budismo ateísta como formas de religiosidade. Na verdade, acho que é uma má ideia. E acho que é uma má ideia porque penso que não é assim que funciona o nosso conceito de religião. Penso que o nosso conceito de religião funciona com aquele que temos. Temos uma lista de religiões paradigmas e dos seus subgrupos. Se aparece alguma coisa de novo que pretenda ser uma religião, o que perguntamos, é: "Será parecida com alguma destas?" E penso que não é só como pensamos sobre a religião, mas é, como sempre foi, do nosso ponto de vista, que tudo nessa lista tem que ser uma religião. Por isso penso que um conceito de religião, que exclua o budismo e o judaísmo, tem hipóteses de ser um bom começo porque estes estão na nossa lista. Mas, porque é que temos esta lista? O que se passa? Como é que aconteceu termos esta lista?

Penso que a resposta é muito simples e, portanto, crua e controversa. De certeza muita gente discordará, mas eis a minha história. Verdadeira ou não, é uma história que eu acho que vos dará uma boa ideia de como a lista poderá ter aparecido. Talvez vos possa pôr a pensar sobre o uso que a lista pode ter. Penso que a resposta é: Os viajantes europeus, por volta da época de Colombo, começaram a passear pelo mundo. Eram provenientes duma cultura cristã e, quando chegavam a um sítio novo, reparavam que alguns povos não tinham cristianismo e faziam a si mesmos esta pergunta: "O que é que eles têm em vez do cristianismo?" E essa lista, na sua essência, foi construída, foi formada pelas coisas que os outros povos tinham, em vez do cristianismo.

Ora, há uma dificuldade em prosseguir por esta via. O cristianismo é extremamente... mesmo nesta lista, é uma tradição extremamente específica. Tem nele todo o tipo de coisas que são muito, muito particulares que são o resultado da especificidade da história cristã. E uma coisa que está no seu âmago, uma coisa que está no âmago da compreensão do cristianismo, que é o resultado da história específica do cristianismo, é que é uma religião recheada de credos. É uma religião em que as pessoas se preocupam realmente sobre se acreditam no que é correto. A história interior do cristianismo é, sobretudo, a história de pessoas que matam outras porque elas acreditavam na coisa errada e também está envolvida em guerras com outras religiões, que começam obviamente na Idade Média, na luta com o Islão, em que, de novo, foi a infidelidade, o fato de não acreditarem nas coisas certas, que pareciam tão ofensivas ao mundo cristão. É uma história muito específica e especial que o cristianismo tem e não é em toda a parte que se põe tudo numa lista como esta. Aqui há outro problema. Aconteceu uma coisa muito específica. Já fora anunciada antes, mas aconteceu uma coisa muito específica na história do tipo de cristianismo que vemos à nossa volta, sobretudo hoje nos Estados Unidos. Aconteceu no final do século XIX. Essa coisa específica que aconteceu no final do século XIX foi uma espécie de acordo que foi cancelado entre a ciência, essa nova forma de organizar a autoridade intelectual, e a religião. Se pensarmos no século XVIII, se pensarmos na vida intelectualantes do final do século XIX, tudo o que fazíamos, tudo aquilo em que pensávamos, quer fosse o mundo físico, o mundo humano, o mundo natural, para além do mundo humano ou da moral, tudo o que fazíamos estava enquadrado num cenário dum conjunto de pressupostos que eram religiosos: os pressupostos cristãos. Não podíamos dar uma explicação do mundo natural que não dissesse qualquer coisa sobre a sua relação, por exemplo, com a história da criação na tradição de Abraão, a história da criação no primeiro livro da Torá. Portanto, tudo estava enquadrado desse modo.

Mas isso mudou no final do século XIX. Pela primeira vez, é possível que as pessoas desenvolvam carreiras intelectuais sérias, como os historiadores naturais, como Darwin. Darwin preocupou-se com a relação entre o que dizia e as verdades da religião, mas pôde prosseguir, pôde escrever livro sobre o seu tema sem ter que dizer qual era a relação com as afirmações religiosas. Os geólogos puderam falar sobre isso cada vez mais. No início do século XIX, se os geólogos falassem sobre a idade da Terra, teriam que explicar se isso era consistente, com a idade da Terra implícita no relato do Génesis. No final do século XIX, podíamos escrever um manual de geologia com argumentos sobre a idade da Terra. Portanto, foi uma grande mudança. Essa divisão intelectual do trabalho ocorre, e de certo modo, solidifica-se, de modo que, no final do século XIX na Europa, há uma real divisão intelectual de trabalho. Podemos fazer todo o tipo de coisas sérias incluindo, de modo crescente, a própria filosofia,sem sermos constrangidos pelo pensamento: "O que eu tenho que dizer tem que ser consistente "com as verdades profundas que me foram dadas "pela nossa tradição religiosa".

Imaginem alguém saído desse mundo, desse mundo do final do século XIX, a chegar ao país em que eu cresci, o Gana, à sociedade em que eu cresci, em Ashanti a chegar a esse mundo no virar do século XX com esta pergunta que eu pus na lista: "O que é que eles têm em vez do cristianismo?"

Bem, há aqui uma coisa em que teriam reparado. A propósito, houve uma pessoa que reparou. Foi o capitão Rattray. Foi um antropólogo do governo britânico, que escreveu um livro sobre a religião ashanti.

Isto é um disco-alma, Há muitos no Museu Britânico. Podia dar-vos uma história interessante, diferente de como há tantas coisas da minha sociedade que acabaram no Museu Britânico... Mas não há tempo para isso. Este objeto é um disco-alma. O que é um disco-alma? Usava-se ao pescoço dos lavadores de almas do rei ashanti. Qual era a sua função? Lavar a alma do rei. Levaria muito tempo para explicar como é que uma alma era uma coisa que podia ser lavada, mas Rattray percebeu que era uma religião porque havia almas em jogo.

E do mesmo modo, havia muitas outras coisas, muitas outras práticas. Por exemplo, sempre que alguém tomava uma bebida, despejava um pouco no chão no que se chamava uma libação. e davam um pouco aos antepassados. O meu pai fazia isso. Quando abria uma garrafa de "whisky", — e fazia-o com frequência — tirava a rolha e despejava um pouquinho no chão, falava com Akroma-Ampim, o fundador da nossa linhagem. ou com Yao Antony, o meu tio-avô, falava com eles, oferecia-lhes um pouco daquilo.

E, por fim, havia enormes cerimoniais públicos. Isto é um desenho do início do séc. XIX de um oficial militar britânico de um cerimonial desses, em que o rei estava envolvido. A função do rei, uma parte principal da sua função, para além de organizar a guerra e coisas dessas, era tomar conta dos túmulos dos seus antepassados. Quando morria um rei bom, o banco onde ele se sentava era enegrecido e colocado no templo real ancestral e, todos os 40 dias, o rei de Ashanti tinha que lá ir e prestar culto aos seus antepassados. Era parte importante do seu cargo. Acreditava-se que se ele não fizesse isso,as coisas desmoronar-se-iam. Portanto, temos aqui uma figura religiosa, — como Rattray teria dito — e também uma figura política.

Tudo isto contou como religião para Rattray. Mas o meu ponto é que, quando olhamos para as vidas dessas pessoas, também percebemos que, sempre que elas fazem qualquer coisa, estão conscientes dos antepassados. Todas as manhãs, ao pequeno-almoço, podemos sair pela porta da rua, fazer uma oferenda ao deus-árvore, o "nyame dua", em frente de casa e, de novo, falar com os deuses, os altos deuses e os baixos deuses, os antepassados, etc. Isto é um mundo em que ainda não se deu a separação entre a religião e a ciência. A religião ainda não foi separada de quaisquer outras áreas da vida e, em especial, o que é fundamental compreender sobre este mundo, é que é um mundo em que a função que a ciência exerce para nós é feita pelo que Rattray vai chamar de religião porque, se querem uma explicação de qualquer coisa, porque é que as colheitas falharam, porque é que está a chover ou não está a chover, se precisam da chuva, se querem saber porque é que o avô morreu, vão apelar a essas mesmas entidades, na mesma linguagem, falar com os mesmos deuses sobre isso. Por outras palavras, esta grande separação entre a religião e a ciência ainda não ocorreu.

Ora bem, isto seria uma curiosidade meramente histórica exceto que, em muitas partes do mundo, isto continua a ser verdade. Tive o privilégio de ir a um casamento outro dia no norte da Namíbia, a 30 km do sul da fronteira com Angola numa aldeia de 200 pessoas. Eram pessoas modernas. Estava lá a Oona Chaplin, de que já devem ter ouvido falar. Uma pessoa da aldeia foi ter com ela e disse: "Vi-a em 'A Guerra dos Tronos'". Portanto, não eram pessoas que estivessem isoladas do nosso mundo mas, apesar disso, para elas, os deuses e os espíritos ainda estão muito presentes. Quando íamos de autocarro para os diversos locais da cerimónia rezavam, não de modo genérico, mas pela segurança da viagem e faziam-no com convicção. Quando me disseram que a minha mãe — a mãe do noivo —estava connosco, não o disseram de modo figurativo. Queriam dizer — apesar de ela já ter morrido —queriam dizer que ela continuava ali. Portanto, em muitos sítios do mundo, hoje em dia, a separação entre a ciência e a religião não ocorreu em muitos sítios do mundo. E, como digo, não são... Este homem trabalhou para o Chase Bank e para o Banco Mundial. (Risos) São cidadãos do mundo tal como nós. mas vêm dum local em que a religião ocupa um papel muito diferente

O que eu queria que vocês pensassem, quando alguém fizer uma grande generalização sobre religião,é que talvez não exista essa coisa de religião, e que, portanto, o que eles dizem, pode não ser verdade.


Translated by Margarida Ferreira
Reviewed by Isabel M. Vaz Belchior

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