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segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Críticas à religião - Marilena Chauí


As primeiras críticas à religião feitas no pensamento ocidental vieram dos filósofos pré-socráticos, que criticaram o politeísmo e o antropomorfismo. Em outras palavras, afirmaram que, do ponto de vista da razão, a pluralidade dos deuses é absurda, pois a essência da divindade é a plenitude infinita, não podendo haver senão uma potência divina.

Declararam também absurdo o antropomorfismo, uma vez que este reduz os deuses à condição de seres super-humanos, isto é, as qualidades da essência divina não podem confundir-se com as da natureza humana. Essas críticas foram retomadas e sistematizadas por Platão, Aristóteles e pelos estoicos.

Uma outra crítica à religião foi feita pelo grego Epicuro e retomada pelo latino Lucrécio. A religião, dizem eles, é fabulação ilusória, nascida do medo da morte e da Natureza. É superstição. No século XVII, o filósofo Espinosa retoma essa crítica, mas em lugar de começar pela religião, começa pela superstição. Os homens, diz ele, têm medo dos males e esperança de bens. Movidos pelas paixões (medo e esperança), não confiam em si mesmos nem nos conhecimentos racionais para evitar males e conseguir bens.

Passional ou irracionalmente, depositam males e bens em forças caprichosas, como a sorte e a fortuna, e as transformam em poderes que os governam arbitrariamente, instaurando a superstição. Para alimentá-la, criam a religião e esta, para conservar seu domínio sobre eles, institui o poder teológico-político. 

Nascida do medo supersticioso, a religião está a serviço da tirania, tanto mais forte quanto mais os homens forem deixados na ignorância da verdadeira natureza de Deus e das causas de todas as coisas. 

Essa diferença entre religião e verdadeiro conhecimento de Deus levou, no século XVIII, à ideia de religião natural ou deísmo. Voltando-se contra a religião institucionalizada como poder eclesiástico e poder teológico-político, os filósofos da Ilustração afirmaram a existência de um Deus que é força e energia inteligente, imanente à Natureza, conhecido pela razão e contrário à superstição. 

Observamos, portanto, que as críticas à religião voltam-se contra dois de seus aspectos: o encantamento do mundo, considerado superstição; e o poder teológico-político institucional, considerado tirânico. 

No século XIX, o filósofo Feuerbach criticou a religião como alienação. Os seres humanos vivem, desde sempre, numa relação com a Natureza e, desde muito cedo, sentem necessidade de explicá-la, e o fazem analisando a origem das coisas, a regularidade dos acontecimentos naturais, a origem da vida, a causa da dor e da morte, a conservação do tempo passado na memória e a esperança de um tempo futuro. Para isso, criam os deuses. Dão-lhes forças e poderes que exprimem desejos humanos. Fazem-nos criadores da realidade. Pouco a pouco, passam a concebê-los como governantes da realidade, dotados de forças e poderes maiores do que os humanos. 

Nesse movimento, gradualmente, de geração a geração, os seres humanos se esquecem de que foram os criadores da divindade, invertem as posições e julgam-se criaturas dos deuses. Estes, cada vez mais, tornam-se seres onipotentes, oniscientes e distantes dos humanos, exigindo destes, culto, rito e obediência. Tornam-se transcendentes e passam a dominar a imaginação e a vida dos seres humanos.

 A alienação religiosa é esse longo processo pelo qual os homens não se reconhecem no produto de sua própria criação, transformando-o num outro (alienus), estranho, distante, poderoso e dominador. O domínio da criatura (deuses) sobre seus criadores (homens) é a alienação. 

A análise de Feuerbach foi retomada por Marx, de quem conhecemos a célebre expressão: “A religião é o ópio do povo”. Com essa afirmação, Marx pretende mostrar que a religião – referindo-se ao judaísmo, ao cristianismo e ao islamismo, isto é, às religiões da salvação – amortece a combatividade dos oprimidos e explorados, porque lhes promete uma vida futura feliz. Na esperança de felicidade e justiça no outro mundo, os despossuídos, explorados e humilhados deixam de combater as causas de suas misérias neste mundo. 

Todavia, Marx fez uma outra afirmação que, em geral, não é lembrada. Disse ele que “a religião é lógica e enciclopédia popular, espírito de um mundo sem espírito”. Que significam essas palavras? 

Com elas, Marx procurou mostrar que a religião é uma forma de conhecimento e de explicação da realidade, usadas pelas classes populares – lógica e enciclopédia – para dar sentido às coisas, às relações sociais e políticas, encontrando significações – o espírito no mundo sem espírito -, que lhes permitem, periodicamente, lutar contra os poderes tirânicos. 

Marx tinha na lembrança as revoltas camponesas e populares durante a Reforma Protestante, bem como na Revolução Inglesa de 1644, na Revolução Francesa de 1789, e nos movimentos milenaristas que exprimiram, na Idade Média, e no início dos movimentos socialistas, a luta popular contra a injustiça social e política. 

Se por um lado na religião há a face opiácea do conformismo, há, por outro lado, a face combativa dos que usam o saber religioso contra as instituições legitimadas pelo poder teológico-político.

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Fonte:

CHAUÍ, Marilena. Convite a filosofia. 12ª ed. – São Paulo: Editora Ática, 2002.

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quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Religar-se – novo livro de Arlindo Rocha

 

“[...] Quando a fé é completamente substituída pelo credo, o culto pela disciplina, o amor pelo hábito; quando a crise de hoje é ignorada pelo esplendor do passado; quando a fé se torna um mero objeto herdado em vez de uma fonte de vida, quando a religião fala somente em nome da autoridade em vez da compaixão, sua mensagem se torna sem sentido [...]”

 [HESCHEL]


 

 Por: Priscilla Lundstedt Rocha 


Somos seres humanos, e assim continuaremos, mas em tempos tão polarizados, e agora com uma pandemia precisamos ainda mais estudar, entender a necessidade humana de abertura para o diálogo, o respeito, a empatia e a tolerância entre os homens em sua procura incessante pelo transcendente, ou de forma mais simples, pelo seu melhor. 

Religar-se não tem a pretensão de ser um guia de como fazer ou ser, jamais! São artigos com idéias, críticas, reflexões éticas, religiosas e filosóficas, a cerca de temas ligadas a Ciência da Religião. O que o autor propõe é a compreensão do ‘fenômeno’ religioso, como parte do ‘fenômeno’ humano a partir do seu contexto histórico, político, social e religioso, com seu alicerce plural, ou seja, sustenta-se sob diversas perspectivas epistemológicas, métodos e metodologias de pesquisa inter-e-transdisciplinares, percurso este, que possibilita a integração da Ciência da Religião com a Sociologia, a Antropologia, a Filosofia e a Psicologia, 

Vi cada artigo nascer, mas antes disso presenciei o estudo, a ‘devoção’, o relegere, isto é, o (re) ler, a (re) visitar, o (re) interpretar (...) e a busca por opiniões sólidas e ideias edificantes. Vi o autor crescer como ser humano, repensar sua vida, seu caminho e seus objetivos. Vi alicerçar sua família, dia a dia, e estimular cada um ao seu redor a ser melhor. Não pensem que as palavras foram doces, pois quando se tem em si, uma revolução conceitual, ou seja, o desejo de autotransformação, de aprimoramento e da escolha de uma nova visão sobre questões que ainda não foram absolutamente esgotadas, as reflexões, por vezes, inquietam e desestabilizam. 

Mas, a grandeza maior é que não há julgamentos, não há ganhadores, nem perdedores, há apenas discussões, (re) interpretações, problematizações e depois o religar-se, ou seja, o verbo transitivo que pressupõe: o atar, o apertar ou, simplesmente, tornar a ligar, ligar ainda melhor. 

Ao ler Religar-se devemos pensar num jogo de frescobol: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a bola veio meio torta, fazemos o maior esforço para devolvê-la no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado: ou os dois ganham ou ninguém ganha. Ninguém fica feliz quando o outro erra, pois, o que se deseja é que ninguém erre. 

Como metáfora a bola são as nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de palavras. Ler, (re) interpretar é ficar batendo sonho pra lá, sonho pra cá, é comprometer-se com um futuro melhor, fazendo sempre a diferença. 

Apesar de muitos considerarem o verbo religar, uma forma prosaica, considero-o uma das melhores formas de autotranscendência humana, pois, o homem aprende que não é um fim em si. Apesar da imanência, seu destino é sobrenatural, por isso, deve aprender a harmonizar seus paradoxos, refletindo, questionando e contribuindo com novas ideias, em fim, evoluir sempre, ultrapassar-se... 

Muitos, com razão, devem questionar: o que significa ser um ser humano melhor? Eu respondo: sendo melhor, fazendo a diferença na vida das pessoas, não julgando, apenas contribuindo com novas reflexões com empatia, respeito, fé e acima de tudo amor. Religar-se, ligou-me ainda mais com minha/ nossa realidade, com a minha família, com o real significado do amor e com o além homem. 

Religar-se é o terceiro livro do meu companheiro de caminhada Arlindo Rocha, o qual tenho orgulho e admiração, além é claro de muito amor. Escritor, pesquisador e professor, um ser humano iluminado, que em meio a turbulência deste ano, dor e ‘desesperança’, não nos desamparou. Em meio às minhas angústias sempre esteve atento, cuidando, protegendo, mesmo quando essa proteção era de mim mesma. Nossa família se manteve unida, pois nos religou, lutou, abraçou e acima de tudo nos ensinou o caminho para ir à luta e superar os novos desafios. 

Seu exemplo de superação diária, dedicação aos estudos e a família nos uniu em um laço, onde estamos amarrados pela coragem, força, perseverança, fé e acima de tudo o amor. Que todos possam entender e sentir a necessidade de Religar-se (sentido religioso ou não), pois, a crescente desumanização e a liquidez das relações humanas, certamente, são os problemas que nos causam tantos danos pela falta de ética e caráter globais. Que leiamos, mas nos “ligando de novo” ao que é essencial, e não apenas comercial e superficial. 

Boa Leitura! 

Rio de Janeiro, aos 20/10/2020.